A SUPREMA INVERSÃO DOS VALORES: O CASO DE ONÉSIMO SILVEIRA
Isaura Gomes, frente ao truculento-mor Onésimo Silveira, é,
com todos os seus defeitos, com todas as suas imperfeições, um modelo de
educação cívica, a madre Teresa de Calcutá do século XXI!
"Democracy is flourishing; liberty is not" – Fareed
Zakaria
A grande questão da democracia cabo-verdiana é, neste
momento, o desafio da sua CONSOLIDAÇÃO. É um programa difícil, um desafio
ciclópico numa atmosfera cultural patrimonialista, cerzida pelo ranço
mercantilista e pelo "esquema mental soviético" (vide infra).
Para não maçar o leitor, resumirei esse complexo programa
político/civilizacional numa frase: trata-se de materializar os grandes
princípios da Constituição de 1992.
Ou seja, fazer com que a dignidade humana, num quadro
social marcado pelo império indiscutível do Direito, seja o princípio e o fim da
actuação dos poderes públicos. A democracia só se consolida, enfim, quando a
Constituição for a referência consensual tanto da sociedade civil quanto da
classe política.
A Constituição não deve ser uma simples peça de retórica. O
escritor Eça de Queiróz, no seu tempo, criticava ironicamente esse formalismo
estéril, ao falar da Carta Constitucional que só era lembrada nos momentos altos
da liturgia oficial.
Ora, se os valores da Constituição não orientam
efectivamente o nosso quotidiano, então não valem nada. A Constituição será,
quando muito, um simples "tigre de papel", como diria um maoista exaltado. O
"esquema mental soviético" – conceito fundamental cunhado pelo filósofo e
jornalista Olavo de Carvalho (ver este link: www.olavodecarvalho.org/semana/20000731epoca.html ) – é, na
verdade, um dos maiores perigos que ameaçam a nossa democracia e o sistema
político. Ouçamos um naco da bela prosa olaviana: "A Constituição da União
Soviética punia o homicídio com dez anos de cadeia e com pena de morte os crimes
contra o património do Estado. Há nisso uma escala de valores e prioridades
exactamente inversa àquela consagrada nas grandes tradições religiosas, em que a
vida humana é o supremo bem. Para a mentalidade comunista – assim como para o
fascismo, que a copiou, apenas enfatizando a luta de nações, em vez da luta de
classes –, o Estado é o valor máximo, a realidade primeira da qual deriva, a
título de concessão oficial, até mesmo o direito de viver". A política, numa
palavra, passa a ser a instância máxima do julgamento moral.
O "esquema mental soviético" é um extraordinário elemento
de subversão dos princípios éticos e jurídicos adquiridos durante séculos e
séculos de história. É uma engenharia de longo alcance (inspirada em Gramsci,
Willi Münzenberg e outros) que visa solapar a herança ética do Cristianismo, a
pedra-de-toque, afinal, do constitucionalismo moderno e da ordem jurídica tal
qual a conhecemos hoje, especialmente no Ocidente. (É claro que a herança da
filosofia greco-latina é importante; mas foi, sobretudo, o Cristianismo que
moldou o constitucionalismo moderno; leia-se a Constituição americana de 1787 e
as dúvidas ficarão completamente dissipadas...).
Trata-se, em síntese, de um vasto e meticuloso processo de
inversão dos valores, no instante mesmo em que é sorrateiramente apresentado,
pelos demagogos de serviço, como a promessa irrecusável da moralidade e da
salvação pública. O último exercício de cinismo protagonizado por Onésimo
Silveira, esperneando alegremente num interessante comício, é um exemplo acabado
do tal "esquema mental soviético".
Descontando a patetice do consumo excessivo de "água do
caramulo" por parte de Isaura Gomes (oh, que horror!), resta o episódio do
"telemóvel" e outras "novidades" que o zelota Onésimo Silveira promete "revelar"
em tempo hábil.
Não me compete, a mim, discutir os pormenores
administrativos da gestão autárquica de Isaura Gomes. Ela saberá, penso,
defender-se, com todos os meios lícitos e necessários, no quadro matricial
permitido pela democracia.
Mas há uma questão que se me afigura decisiva: só por uma
escandalosa inversão de valores se pode aceitar que uma alma habilidosa do
quilate de Onésimo Silveira (que hoje recomenda como remédio santo aquilo que
ontem era apenas lixo desprezível) esteja, agora, no púlpito da rectidão a
julgar a moralidade alheia. O bailarico eleitoral do camaleão/justiceiro mais
não é do que um espectáculo rocambolesco, um arremedo tardio de
charlatanice.
Se alguém propusesse, em qualquer país minimamente
civilizado, um Al Capone, digamos, como corrector da bolsa ou juiz do Supremo
Tribunal de Justiça, é claro que seria, imediatamente, escorraçado do debate ou
corrido a pontapés. Proponha algo semelhante em Cabo Verde e você é um
génio!
Isaura Gomes, frente ao truculento-mor Onésimo Silveira, é,
com todos os seus defeitos, com todas as suas imperfeições, um modelo de
educação cívica, a madre Teresa de Calcutá do século XXI!
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