segunda-feira, 5 de maio de 2008

A SUPREMA INVERSÃO DOS VALORES: O CASO DE ONÉSIMO SILVEIRA

Isaura Gomes, frente ao truculento-mor Onésimo Silveira, é, com todos os seus defeitos, com todas as suas imperfeições, um modelo de educação cívica, a madre Teresa de Calcutá do século XXI!

"Democracy is flourishing; liberty is not" – Fareed Zakaria
A grande questão da democracia cabo-verdiana é, neste momento, o desafio da sua CONSOLIDAÇÃO. É um programa difícil, um desafio ciclópico numa atmosfera cultural patrimonialista, cerzida pelo ranço mercantilista e pelo "esquema mental soviético" (vide infra).
Para não maçar o leitor, resumirei esse complexo programa político/civilizacional numa frase: trata-se de materializar os grandes princípios da Constituição de 1992.
Ou seja, fazer com que a dignidade humana, num quadro social marcado pelo império indiscutível do Direito, seja o princípio e o fim da actuação dos poderes públicos. A democracia só se consolida, enfim, quando a Constituição for a referência consensual tanto da sociedade civil quanto da classe política.
A Constituição não deve ser uma simples peça de retórica. O escritor Eça de Queiróz, no seu tempo, criticava ironicamente esse formalismo estéril, ao falar da Carta Constitucional que só era lembrada nos momentos altos da liturgia oficial.
Ora, se os valores da Constituição não orientam efectivamente o nosso quotidiano, então não valem nada. A Constituição será, quando muito, um simples "tigre de papel", como diria um maoista exaltado. O "esquema mental soviético" – conceito fundamental cunhado pelo filósofo e jornalista Olavo de Carvalho (ver este link: www.olavodecarvalho.org/semana/20000731epoca.html ) – é, na verdade, um dos maiores perigos que ameaçam a nossa democracia e o sistema político. Ouçamos um naco da bela prosa olaviana: "A Constituição da União Soviética punia o homicídio com dez anos de cadeia e com pena de morte os crimes contra o património do Estado. Há nisso uma escala de valores e prioridades exactamente inversa àquela consagrada nas grandes tradições religiosas, em que a vida humana é o supremo bem. Para a mentalidade comunista – assim como para o fascismo, que a copiou, apenas enfatizando a luta de nações, em vez da luta de classes –, o Estado é o valor máximo, a realidade primeira da qual deriva, a título de concessão oficial, até mesmo o direito de viver". A política, numa palavra, passa a ser a instância máxima do julgamento moral.
O "esquema mental soviético" é um extraordinário elemento de subversão dos princípios éticos e jurídicos adquiridos durante séculos e séculos de história. É uma engenharia de longo alcance (inspirada em Gramsci, Willi Münzenberg e outros) que visa solapar a herança ética do Cristianismo, a pedra-de-toque, afinal, do constitucionalismo moderno e da ordem jurídica tal qual a conhecemos hoje, especialmente no Ocidente. (É claro que a herança da filosofia greco-latina é importante; mas foi, sobretudo, o Cristianismo que moldou o constitucionalismo moderno; leia-se a Constituição americana de 1787 e as dúvidas ficarão completamente dissipadas...).
Trata-se, em síntese, de um vasto e meticuloso processo de inversão dos valores, no instante mesmo em que é sorrateiramente apresentado, pelos demagogos de serviço, como a promessa irrecusável da moralidade e da salvação pública. O último exercício de cinismo protagonizado por Onésimo Silveira, esperneando alegremente num interessante comício, é um exemplo acabado do tal "esquema mental soviético".
Descontando a patetice do consumo excessivo de "água do caramulo" por parte de Isaura Gomes (oh, que horror!), resta o episódio do "telemóvel" e outras "novidades" que o zelota Onésimo Silveira promete "revelar" em tempo hábil.
Não me compete, a mim, discutir os pormenores administrativos da gestão autárquica de Isaura Gomes. Ela saberá, penso, defender-se, com todos os meios lícitos e necessários, no quadro matricial permitido pela democracia.
Mas há uma questão que se me afigura decisiva: só por uma escandalosa inversão de valores se pode aceitar que uma alma habilidosa do quilate de Onésimo Silveira (que hoje recomenda como remédio santo aquilo que ontem era apenas lixo desprezível) esteja, agora, no púlpito da rectidão a julgar a moralidade alheia. O bailarico eleitoral do camaleão/justiceiro mais não é do que um espectáculo rocambolesco, um arremedo tardio de charlatanice.
Se alguém propusesse, em qualquer país minimamente civilizado, um Al Capone, digamos, como corrector da bolsa ou juiz do Supremo Tribunal de Justiça, é claro que seria, imediatamente, escorraçado do debate ou corrido a pontapés. Proponha algo semelhante em Cabo Verde e você é um génio!
Isaura Gomes, frente ao truculento-mor Onésimo Silveira, é, com todos os seus defeitos, com todas as suas imperfeições, um modelo de educação cívica, a madre Teresa de Calcutá do século XXI!

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Jurista e Docente Universitário

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