quarta-feira, 11 de junho de 2008

CARTA ABERTA A UMA VÍTIMA DO GENOCÍDIO CULTURAL

Ana, presta bem atenção: não há, neste momento, nenhuma lei escrita sobre a expulsão (ou "suspensão", como dizem alguns, num eufemismo cínico) das alunas grávidas. Os inventores dessa prática preconceituosa, cobardes como são, não tiveram a coragem, até hoje, de escrever uma lei dessa natureza

Prezada Ana Rodrigues:
Amiga! Permita-me, antes do mais, esta fórmula familiar, pois somos, apesar da distância e da diferença de idade, Cidadãos da mesma Nação Crioula e cúmplices de uma revolta que gela o espírito de qualquer criatura civilizada.
Amiga Ana! Não nos conhecemos de parte alguma, bem o sei. Aliás, isso não interessa. Só sei que, ao ler a notícia sobre o crime, sim crime, que os teus algozes congeminam, senti um nó na garganta.
Não posso acreditar que uns trogloditas do Ministério da Educação estejam, novamente, a expulsar adolescentes grávidas dos liceus. É uma injustiça intolerável, amiga, e uma prática que destrói, pela base, o Estado de direito constitucional que queremos construir em Cabo Verde.
Talvez não saibas, mas a verdade é que toda a nossa ordem jurídica assenta num princípio fundamental: os actos do Estado e das demais entidades públicas só são válidas se forem conformes com a Constituição da República.
Ana, presta bem atenção: não há, neste momento, nenhuma lei escrita sobre a expulsão (ou "suspensão", como dizem alguns, num eufemismo cínico) das alunas grávidas. Os inventores dessa prática preconceituosa, cobardes como são, não tiveram a coragem, até hoje, de escrever uma lei dessa natureza. Não o fizeram por dois motivos:
a) A comunidade internacional iria ficar ao corrente da imensa cretinice jurídica dessa "classe" dirigente;
b) O STJ, enquanto Tribunal Constitucional, iria, à primeira investida, declarar essa lei inconstitucional e, como tal, inválida e inaplicável em todo o território nacional.
Eles sabem que é assim. E, por isso, preferem agir avisadamente na sombra, rastejando, como vermes, na superfície viscosa da "clandestinidade" jurídica, servindo-se, aliás, de uns quantos cipaios que nunca aprenderam a recusar uma ordem vinda "do Chefe" e dos corredores do poder.
O que pretendem fazer contigo, amiga, não tem, portanto, qualquer base legal. É uma pura chantagem psicológica. Logo, não és obrigada a cumprir essa suposta "ordem". É o teu futuro que está em jogo. É a tua dignidade que eles, no fundo, querem roubar, por mera vaidade e ignorância.
Ninguém pode expulsar-te, fisicamente, da escola. Se o fizerem, estarão a cometer um crime grave e poderão ir à cadeia por causa disso. Vai à escola, moça, assim como tens ido sempre. Estás no teu direito.
Ouça Ana: não tens que assinar nenhum papel, documento ou "compromisso", como pretendem certos defensores dessa pseudo-ordem administrativa, essa espécie de "merdinha enfeitada", no dizer do grande poeta João Varela.
Não escrevas, outrossim, à Ministra da Educação. A dra. Filomena Martins é uma garota muito gira, mas não merece o teu respeito, porque pisa, sem compaixão, o teu direito fundamental (isto é: a Liberdade de Aprender, garantida no art. 49.º da Constituição), indiferente à tua sorte e aos teus sonhos mais legítimos.
A meu ver, devias fazer o seguinte:
a) Ir à escola e concluir o presente ano lectivo, já praticamente no fim;
b) Se alguém, tipo algum chefículo (local) mais atrevido, tentar te impedir, arranja um advogado e processa, imediatamente, esse cretino, por abuso de poder e de autoridade, sob a alçada do Código Penal. Pois, como já te expliquei, não existe qualquer lei e ninguém pode negar a tua dignidade e condição humana. Estás protegida por todos os Códigos do mundo e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos;
c) Se fores pobre, Ana, a Ordem dos Advogados arranjar-te-á um advogado, como manda a lei.
Confio em ti, Ana Rodrigues. Espero que não aceites, em caso algum, a pressão psicológica. Exerce a tua cidadania!
Faça uma cópia do artigo 23.º da Constituição e leva-a contigo para a escola: "Todos os cidadãos têm igual dignidade social e são iguais perante a lei, ninguém podendo ser privilegiado, beneficiado ou prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de raça, sexo, ascendência, língua, origem, religião, condições sociais e económicas ou convicções políticas ou ideológicas".
Distribua isso pelos teus colegas, porque eles podem estar desinformados acerca dos fundamentos da liberdade individual.
Para terminar, gostaria de dizer-te o seguinte: em nenhuma democracia constitucional do mundo (Europa, Estados Unidos da América, Nova Zelândia, Canadá, Austrália, etc.) se pratica o que querem fazer contigo.
Não é só uma questão de expulsar uma aluna (aliás, o "governo" de José Maria Neves já expulsou dezenas de alunas dos liceus...). A questão é outra, amiga. Trata-se, na verdade, da fronteira entre a Liberdade de Aprender – exercida nos termos da lei – e o Genocídio Cultural, guiado pelo obscurantismo e abuso de poder.
Cabo Verde não é uma República Islâmica. Somos um Estado de direito, uma democracia liberal, "...que garante o respeito pela dignidade da pessoa humana e reconhece a inviolabilidade e inalienabilidade dos Direitos do Homem, como fundamento de toda a comunidade humana, da paz e da justiça".
Felicidades, Ana! É triste ver um país tão desatento perante uma injustiça tão flagrante, mas o Altíssimo, minha querida, há-de ouvir a tua prece e iluminar-te o caminho. 


Macau, aos 10 de Junho do ano de Cristo de 2008.

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Jurista e Docente Universitário

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