segunda-feira, 8 de maio de 2006

POPULISMO, PAZ INTERNACIONAL E REPUBLICANISMO KANTIANO

Entretanto, um terceiro jurista junta-se ao grupo. Cumprimenta-me e entra logo na conversa. Digo-lhes apenas: “vocês estão a discutir liberdade de imprensa ou TPI?”. O ambiente torna-se tenso. Todos falam ao mesmo tempo. Peço a palavra e dou-lhes um banho de água fria: “Por aquilo que eu sei, não foi Bush o culpado pela não adesão ao TPI; a Constituição americana proíbe um qualquer acordo nesse sentido; tinha que haver, para isso, uma emenda constitucional, que é um processo difícil, o que ultrapassa a vontade de George Bush”


Com um aceno elegante, Sá Nogueira reclama a minha presença na sua roda de amigos. Apresenta-me aos dois cavalheiros. São juristas. Sobriamente vestidos. Percebe-se que já assumiram aquele ar grave, levemente cómico, que faz a fama de uma certa jurisprudência. Todos querem me ouvir. Um, à minha direita, manifesta a sua estranheza a respeito do “caso Britar”. Explico-lhe, rapidamente, o imbróglio. Recuso a cerveja, mas a conversa continua. Vem à baila, logo a seguir, o problema da liberdade de imprensa. Sá Nogueira invoca a falta de uma “classe organizada” como uma das causas dos desmandos em Cabo Verde. Concordo. E os convivas também. Realmente, a observância da deontologia profissional, imposta por órgãos respeitados, é crucial para a afirmação de uma imprensa vigilante e democrática.
Faço-lhes ver, porém, que o jornalismo tem uma história em Cabo Verde, atravessada, sobretudo, por regimes autoritários, como o Estado Novo e o Partido Único: regimes que institucionalizaram o medo e a censura como forma de governo. O jornalismo em Cabo Verde já teve um período áureo, no século XIX, quando se inaugurou a tradição da Liberdade em Cabo Verde. Foi a época de polemistas raros, que os nefelibatas chamam, com um desdém timbrado de ressentimento, de “nativistas pré-claridosos”. Na verdade, foi esse escol oitocentista que impôs a independência de espírito neste Atlântico Médio, num rasgo profético que ainda não mereceu as honrarias devidas. O reconhecimento dessa “epopeia de cidadania” é um serviço público por cumprir.
Essa geração iluminou o espaço público, denunciou arbitrariedades e construiu todo um património espiritual cuja actualidade é indiscutível. As reflexões juspolíticas de Eugénio Tavares, por exemplo, são perfeitamente condizentes com o Estado de direito democrático que escolhemos como forma de vida, quando rompemos, em 1992, com o constitucionalismo de inspiração soviética. Eugénio, em termos de reflexão filosófica sobre a justiça, é muito mais moderno que qualquer figura da “geração da luta armada”. Ele é um liberal amante do Estado de direito, um Sócrates perdido no meio das “toutinegras” da Brava “estremecida” e pré-industrial; um mestre da arte clássica de ser livre; um defensor da sociedade aberta, a qual irrompeu aí por volta do século V a.C., com o cosmopolitismo ateniense, alicerçado no comércio, na paz, na livre troca de ideias e no sistema democrático, completado, depois, pelo humanismo cristão, pela filosofia da Luzes e pela “liberdade dos modernos”.
Conversa puxa conversa, tive que explicar à rapaziada que a Liberdade é uma questão de arranjo institucional; um sistema político de “checks and balances”, segundo a lição de James Madison. Dei-lhes o exemplo da tradição anglo-americana da Liberdade, a tradição da “Magna Carta”, do parlamentarismo, do “Bill of Rights”, dos “Federalist Papers” e da sociedade civil, que o jacobinismo francês totalitário, prenúncio da baderna “comunista”, nunca compreendeu. Lord Acton foi claro: “todo o poder corrompe; e o poder absoluto corrompe absolutamente”. A conversa perdeu o sabor. América, a “pátria dos abusos e do imperialismo”, exemplo de Liberdade? Como? Impossível! Olharam-me com suspeição.
Aliás: não perceberam patavina. Vi, claramente, que os “debates” neste país estão inquinados, pelos preconceitos e pela desinformação geral. É difícil explicar a Liberdade àquele que nunca leu Tocqueville ou Jean François Revel. E que, mesmo assim, pensa que sabe tudo. “Perdi” a batalha! Um exemplo: um deles, mal assinalei a liberdade dos “media” norte-americanos (que ninguém, no seu perfeito juízo, contesta), sublinhou convicto: “Sim, mas Bush não aderiu ao Tribunal Penal Internacional (TPI)”. Reparem nesse truque de bordel: há liberdade de imprensa, sim, tudo bem, mas América é um “país reaccionário”, pois “não aderiu” ao TPI. Entretanto, um terceiro jurista junta-se ao grupo. Cumprimenta-me e entra logo na conversa. Digo-lhes apenas: “vocês estão a discutir liberdade de imprensa ou TPI?”. O ambiente torna-se tenso. Todos falam ao mesmo tempo. Peço a palavra e dou-lhes um banho de água fria: “Por aquilo que eu sei, não foi Bush o culpado pela não adesão ao TPI; a Constituição americana proíbe um qualquer acordo nesse sentido; tinha que haver, para isso, uma emenda constitucional, que é um processo difícil, o que ultrapassa a vontade de George Bush”.
Dito isso, o espanto tomou conta da plateia. “Nunca ouvi isso, nem na imprensa, nem nada”, diz o terceiro elemento recém-chegado, com ar de gaiato. É um pormenor altamente interessante, este, porque revela a essência do antiamericanismo, enquanto ideologia. Fala-se do TPI, critica-se o “autismo” de Bush e, no entanto, não se tem a mínima noção do sistema político americano. Apanhado em falso, basta retorquir: “nunca ouvi tal coisa”! Pois...
Surgem, como eu esperava, outros “temas clássicos”, que a desinformação copiosamente propagou. “Israel”, aponta o gaiato. Pois Israel. América é o “grande culpado” pelo conflito entre os judeus e os palestinianos. Perguntei-lhe: “Quem foi o responsável pelo genocídio, por altura da II Guerra Mundial, que deu origem ao Estado judaico? Foi a América?”. Os semblantes perdem alegria. A voz sobe de tom. Ensaia-se um sorriso maoísta. “Já vi que és pró-americano”, anotou o bom-moço. Da argumentação racional passa-se à colagem dos rótulos. Fala-se, para variar, do incorrigível “imperialismo” americano. Debalde. Recordo-lhes o Plano Marshall e a reconstrução da Europa, numa altura em que os EUA, com o seu poderio militar, podiam colonizar, querendo, metade do mundo. (Estaline fez precisamente o contrário, mas nunca foi apodado de “imperialista”, pelo contrário...). A propósito desse episódio emblemático, o grande Eric Voegelin escreveu: “Os factos são simples e, no entanto, não é suficientemente aceite a constatação de que, nunca antes na história da humanidade, uma potência mundial usou a vitória deliberadamente para criar um vácuo de poder em seu próprio prejuízo”.
Não conseguindo “explicar” essa ausência de “apetite imperial”, os ilustres fazem ouvidos de mercador. E lá continuam, basbaques, repetindo a tolice: “sim, mas ‘aquilo’ foi no seu interesse”. É o antiamericanismo no seu clímax! Perante um facto, que contraria a “imagem pré-concebida”, recusa-se a realidade, pintando, em jeito de negação da evidência, um outro “cenário”, estabilizador da crença ideológica inicial. Não se aceita a realidade, eis o ponto. E pronto! Prefere-se a segurança da “imagem arquetípica”, num fenómeno psicológico que não abona a favor da “inteligência” de quem o congemina. E, finalmente, desferem-me o “grande” ataque: a guerra do Iraque.
Como explicar “isso” à luz do Direito Internacional? O Conselho de Segurança (CS) não “autorizou” a intervenção, retorquiram. É “ilegal”. Fiz-lhes ver que essa “alegação” é um quase disparate. A ONU foi criada em 1945. Há 61 anos. Ora, durante esse período, houve dezenas e dezenas de conflitos internacionais, intervenções em vários sítios, guerras, etc.. Durante 61 anos, o CS das Nações Unidas só “aprovou” três conflitos apenas (aliás sob protestos estridentes dos “pacifistas”, como no caso da guerra da Coreia), prova da sua altíssima ineficácia reguladora. Uma “norma” que não vigora não pode exibir autoridade jurídica. O “costume internacional”, neste caso, teve muito mais força. É, pois, um absurdo pretender que qualquer intervenção militar tenha de passar pelo crivo “legitimador” do CS, extraindo-se, daí, um princípio moral inultrapassável, como se pretendeu, hipocritamente, na guerra do Iraque.
Aliás, o único marco jurídico que existia, recorde-se, era a resolução 1441, a qual condenava o Iraque e previa “retaliação” em caso de incumprimento das obrigações impostas a Saddam Hussein, que brincou com a ONU durante 12 anos, desrespeitando as várias resoluções. A coligação que destronou o “califa” do Baas deu, assim, credibilidade à ONU, impondo respeito na arena internacional. Veja-se, aliás, o actual quadro criado pela China e Rússia, membros permanentes do CS, com “direito de veto”. Perante um Irão ameaçador, governado por um maluco que se diz “mensageiro do fim dos tempos”, os dois aliados autocráticos do Irão recusam-se, simplesmente, a aprovar qualquer medida mais firme. O Irão, cadinho da intolerância, não acata as resoluções da ONU e continua a ameaçar Israel, Estado-membro da ONU, prometendo “apagá-lo” do mapa político. Além disso, financia grupúsculos que semeiam o terror no Médio Oriente, a começar pela tentativa demencial e “jihadista” de impedir a democratização do Iraque. Desta vez, as potências europeias (França inclusive), cientes do perigo e da “sua” edificante impotência militar, estão ao lado dos EUA, o único país que pode pôr o trânsfuga da Pérsia, Mahmoud Ahmadinejad, na linha. Tem sido assim desde 1945: a Europa, por vezes reaccionária e ingrata, só prosperou sob o manto protector dos EUA, guardião último dos valores da Liberdade e Democracia, que dão consistência à vasta comunidade Atlântica. A paz não é folclore lírico, nem poesia mística delineada nos areópagos internacionais. Tampouco é produto de urros primários expelidos pela ideologia festiva. A paz é um princípio. E exige “instituições” políticas para a sua manutenção. Instituições democráticas, naturalmente. A democracia é o único sistema pacífico, porque se baseia na liberdade e dignidade do ser humano, no primado da lei. Não há paz quando a pessoa humana é desprezada, por um poder despótico ou por ameaças terroristas. Estados Unidos, Canadá, França, Austrália, Inglaterra, etc., nunca se atacaram mutuamente. Não há notícia de uma democracia que atacou outra democracia. Esta é a “condição kantiana” para a paz. O resto é populismo e apego soberbo à ideologia totalitária, incapaz de distinguir entre a Liberdade e o chamamento à violência, sob o disfarce da religião e do fundamentalismo medieval, inviável, opressor e antimodernizante, assente na pobreza, na corrupção das elites petrolíferas e na discriminação sexual e religiosa.

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Jurista e Docente Universitário

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