POPULISMO, PAZ INTERNACIONAL E REPUBLICANISMO KANTIANO
Entretanto, um terceiro jurista junta-se ao
grupo. Cumprimenta-me e entra logo na conversa. Digo-lhes apenas:
“vocês estão a discutir liberdade de imprensa ou TPI?”. O ambiente
torna-se tenso. Todos falam ao mesmo tempo. Peço a palavra e dou-lhes
um banho de água fria: “Por aquilo que eu sei, não foi Bush o culpado
pela não adesão ao TPI; a Constituição americana proíbe um qualquer
acordo nesse sentido; tinha que haver, para isso, uma emenda
constitucional, que é um processo difícil, o que ultrapassa a vontade
de George Bush”
Com um aceno elegante, Sá Nogueira reclama a
minha presença na sua roda de amigos. Apresenta-me aos dois
cavalheiros. São juristas. Sobriamente vestidos. Percebe-se que já
assumiram aquele ar grave, levemente cómico, que faz a fama de uma
certa jurisprudência. Todos querem me ouvir. Um, à minha direita,
manifesta a sua estranheza a respeito do “caso Britar”. Explico-lhe,
rapidamente, o imbróglio. Recuso a cerveja, mas a conversa continua.
Vem à baila, logo a seguir, o problema da liberdade de imprensa. Sá
Nogueira invoca a falta de uma “classe organizada” como uma das causas
dos desmandos em Cabo Verde. Concordo. E os convivas também. Realmente,
a observância da deontologia profissional, imposta por órgãos
respeitados, é crucial para a afirmação de uma imprensa vigilante e
democrática.
Faço-lhes ver, porém, que o jornalismo tem uma
história em Cabo Verde, atravessada, sobretudo, por regimes
autoritários, como o Estado Novo e o Partido Único: regimes que
institucionalizaram o medo e a censura como forma de governo. O
jornalismo em Cabo Verde já teve um período áureo, no século XIX,
quando se inaugurou a tradição da Liberdade em Cabo Verde. Foi a época
de polemistas raros, que os nefelibatas chamam, com um desdém timbrado
de ressentimento, de “nativistas pré-claridosos”. Na verdade, foi esse
escol oitocentista que impôs a independência de espírito neste
Atlântico Médio, num rasgo profético que ainda não mereceu as honrarias
devidas. O reconhecimento dessa “epopeia de cidadania” é um serviço
público por cumprir.
Essa geração iluminou o espaço público,
denunciou arbitrariedades e construiu todo um património espiritual
cuja actualidade é indiscutível. As reflexões juspolíticas de Eugénio
Tavares, por exemplo, são perfeitamente condizentes com o Estado de
direito democrático que escolhemos como forma de vida, quando rompemos,
em 1992, com o constitucionalismo de inspiração soviética. Eugénio, em
termos de reflexão filosófica sobre a justiça, é muito mais moderno que
qualquer figura da “geração da luta armada”. Ele é um liberal amante do
Estado de direito, um Sócrates perdido no meio das “toutinegras” da
Brava “estremecida” e pré-industrial; um mestre da arte clássica de ser
livre; um defensor da sociedade aberta, a qual irrompeu aí por volta do
século V a.C., com o cosmopolitismo ateniense, alicerçado no comércio,
na paz, na livre troca de ideias e no sistema democrático, completado,
depois, pelo humanismo cristão, pela filosofia da Luzes e pela
“liberdade dos modernos”.
Conversa puxa conversa, tive que explicar à
rapaziada que a Liberdade é uma questão de arranjo institucional; um
sistema político de “checks and balances”, segundo a lição de James
Madison. Dei-lhes o exemplo da tradição anglo-americana da Liberdade, a
tradição da “Magna Carta”, do parlamentarismo, do “Bill of Rights”, dos
“Federalist Papers” e da sociedade civil, que o jacobinismo francês
totalitário, prenúncio da baderna “comunista”, nunca compreendeu. Lord
Acton foi claro: “todo o poder corrompe; e o poder absoluto corrompe
absolutamente”. A conversa perdeu o sabor. América, a “pátria dos
abusos e do imperialismo”, exemplo de Liberdade? Como? Impossível!
Olharam-me com suspeição.
Aliás: não perceberam patavina. Vi, claramente,
que os “debates” neste país estão inquinados, pelos preconceitos e pela
desinformação geral. É difícil explicar a Liberdade àquele que nunca
leu Tocqueville ou Jean François Revel. E que, mesmo assim, pensa que
sabe tudo. “Perdi” a batalha! Um exemplo: um deles, mal assinalei a
liberdade dos “media” norte-americanos (que ninguém, no seu perfeito
juízo, contesta), sublinhou convicto: “Sim, mas Bush não aderiu ao
Tribunal Penal Internacional (TPI)”. Reparem nesse truque de bordel: há
liberdade de imprensa, sim, tudo bem, mas América é um “país
reaccionário”, pois “não aderiu” ao TPI. Entretanto, um terceiro
jurista junta-se ao grupo. Cumprimenta-me e entra logo na conversa.
Digo-lhes apenas: “vocês estão a discutir liberdade de imprensa ou
TPI?”. O ambiente torna-se tenso. Todos falam ao mesmo tempo. Peço a
palavra e dou-lhes um banho de água fria: “Por aquilo que eu sei, não
foi Bush o culpado pela não adesão ao TPI; a Constituição americana
proíbe um qualquer acordo nesse sentido; tinha que haver, para isso,
uma emenda constitucional, que é um processo difícil, o que ultrapassa
a vontade de George Bush”.
Dito isso, o espanto tomou conta da plateia.
“Nunca ouvi isso, nem na imprensa, nem nada”, diz o terceiro elemento
recém-chegado, com ar de gaiato. É um pormenor altamente interessante,
este, porque revela a essência do antiamericanismo, enquanto ideologia.
Fala-se do TPI, critica-se o “autismo” de Bush e, no entanto, não se
tem a mínima noção do sistema político americano. Apanhado em falso,
basta retorquir: “nunca ouvi tal coisa”! Pois...
Surgem, como eu esperava, outros “temas
clássicos”, que a desinformação copiosamente propagou. “Israel”, aponta
o gaiato. Pois Israel. América é o “grande culpado” pelo conflito entre
os judeus e os palestinianos. Perguntei-lhe: “Quem foi o responsável
pelo genocídio, por altura da II Guerra Mundial, que deu origem ao
Estado judaico? Foi a América?”. Os semblantes perdem alegria. A voz
sobe de tom. Ensaia-se um sorriso maoísta. “Já vi que és
pró-americano”, anotou o bom-moço. Da argumentação racional passa-se à
colagem dos rótulos. Fala-se, para variar, do incorrigível
“imperialismo” americano. Debalde. Recordo-lhes o Plano Marshall e a
reconstrução da Europa, numa altura em que os EUA, com o seu poderio
militar, podiam colonizar, querendo, metade do mundo. (Estaline fez
precisamente o contrário, mas nunca foi apodado de “imperialista”, pelo
contrário...). A propósito desse episódio emblemático, o grande Eric
Voegelin escreveu: “Os factos são simples e, no entanto, não é
suficientemente aceite a constatação de que, nunca antes na história da
humanidade, uma potência mundial usou a vitória deliberadamente para
criar um vácuo de poder em seu próprio prejuízo”.
Não conseguindo “explicar” essa ausência de
“apetite imperial”, os ilustres fazem ouvidos de mercador. E lá
continuam, basbaques, repetindo a tolice: “sim, mas ‘aquilo’ foi no seu
interesse”. É o antiamericanismo no seu clímax! Perante um facto, que
contraria a “imagem pré-concebida”, recusa-se a realidade, pintando, em
jeito de negação da evidência, um outro “cenário”, estabilizador da
crença ideológica inicial. Não se aceita a realidade, eis o ponto. E
pronto! Prefere-se a segurança da “imagem arquetípica”, num fenómeno
psicológico que não abona a favor da “inteligência” de quem o
congemina. E, finalmente, desferem-me o “grande” ataque: a guerra do
Iraque.
Como explicar “isso” à luz do Direito
Internacional? O Conselho de Segurança (CS) não “autorizou” a
intervenção, retorquiram. É “ilegal”. Fiz-lhes ver que essa “alegação”
é um quase disparate. A ONU foi criada em 1945. Há 61 anos. Ora,
durante esse período, houve dezenas e dezenas de conflitos
internacionais, intervenções em vários sítios, guerras, etc.. Durante
61 anos, o CS das Nações Unidas só “aprovou” três conflitos apenas
(aliás sob protestos estridentes dos “pacifistas”, como no caso da
guerra da Coreia), prova da sua altíssima ineficácia reguladora. Uma
“norma” que não vigora não pode exibir autoridade jurídica. O “costume
internacional”, neste caso, teve muito mais força. É, pois, um absurdo
pretender que qualquer intervenção militar tenha de passar pelo crivo
“legitimador” do CS, extraindo-se, daí, um princípio moral
inultrapassável, como se pretendeu, hipocritamente, na guerra do Iraque.
Aliás, o único marco jurídico que existia,
recorde-se, era a resolução 1441, a qual condenava o Iraque e previa
“retaliação” em caso de incumprimento das obrigações impostas a Saddam
Hussein, que brincou com a ONU durante 12 anos, desrespeitando as
várias resoluções. A coligação que destronou o “califa” do Baas deu,
assim, credibilidade à ONU, impondo respeito na arena internacional.
Veja-se, aliás, o actual quadro criado pela China e Rússia, membros
permanentes do CS, com “direito de veto”. Perante um Irão ameaçador,
governado por um maluco que se diz “mensageiro do fim dos tempos”, os
dois aliados autocráticos do Irão recusam-se, simplesmente, a aprovar
qualquer medida mais firme. O Irão, cadinho da intolerância, não acata
as resoluções da ONU e continua a ameaçar Israel, Estado-membro da ONU,
prometendo “apagá-lo” do mapa político. Além disso, financia
grupúsculos que semeiam o terror no Médio Oriente, a começar pela
tentativa demencial e “jihadista” de impedir a democratização do
Iraque. Desta vez, as potências europeias (França inclusive), cientes
do perigo e da “sua” edificante impotência militar, estão ao lado dos
EUA, o único país que pode pôr o trânsfuga da Pérsia, Mahmoud
Ahmadinejad, na linha. Tem sido assim desde 1945: a Europa, por vezes
reaccionária e ingrata, só prosperou sob o manto protector dos EUA,
guardião último dos valores da Liberdade e Democracia, que dão
consistência à vasta comunidade Atlântica. A paz não é folclore lírico,
nem poesia mística delineada nos areópagos internacionais. Tampouco é
produto de urros primários expelidos pela ideologia festiva. A paz é um
princípio. E exige “instituições” políticas para a sua manutenção.
Instituições democráticas, naturalmente. A democracia é o único sistema
pacífico, porque se baseia na liberdade e dignidade do ser humano, no
primado da lei. Não há paz quando a pessoa humana é desprezada, por um
poder despótico ou por ameaças terroristas. Estados Unidos, Canadá,
França, Austrália, Inglaterra, etc., nunca se atacaram mutuamente. Não
há notícia de uma democracia que atacou outra democracia. Esta é a
“condição kantiana” para a paz. O resto é populismo e apego soberbo à
ideologia totalitária, incapaz de distinguir entre a Liberdade e o
chamamento à violência, sob o disfarce da religião e do fundamentalismo
medieval, inviável, opressor e antimodernizante, assente na pobreza, na
corrupção das elites petrolíferas e na discriminação sexual e religiosa.
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