segunda-feira, 24 de abril de 2006

DEMOCRACIA OU REDE MAFIOSA?

… temos, em Cabo Verde, muito boa gente com um salário formalmente baixo que, entretanto, exibe admiráveis fortunas. Mas ninguém se preocupa com essa gente (usemos esta expressão por caridade cristã), que passeia bovinamente a sua glória por aí, prosperando, aliás, impunemente, numa estranha promiscuidade entre o público e o privado; “gozando” com o cidadão comum e contribuindo, poderosamente, para a erosão dos valores sociais. Numa atmosfera onde campeia a impunidade, o cidadão honesto é apenas um estúpido. E, por isso, uma ave rara. A transparência não compensa, e as crianças apercebem-se disso desde muito cedo. É por essa razão que os nossos jovens (num fenómeno que tive a felicidade de presenciar várias vezes) acham os seus amigos estrangeiros “infantis” e “pouco espertos”, porque eles “confiam demais”!...

Não fosse a coragem assinalável deste jornal electrónico (“Liberal”), secundado, depois, pelo “Expresso das Ilhas”, o caso que vou comentar jamais teria qualquer eco na opinião pública. Não fosse o rigor deontológico, a patranha seria, mais uma vez, encoberta e escondida, para gáudio dos “deuses do estábulo” que nos prometem paraísos enquanto prolifera a pobreza, o desemprego, a injustiça larvar e a censura na comunicação “social” do Estado.
A imprensa tem, efectivamente, este papel irrecusável: iluminar a nação. Penetrando no antro sombrio onde dançam os sicofantas, ela resgata a pura verdade e, veloz, trá-la ao convívio dos homens de bom senso, caldeados pela cidadania tranquila e pelos valores positivos da humanidade.
Por isso é que Thomas Jefferson, um dos “pais fundadores” da América, afirmava que, entre um Governo sem imprensa e uma imprensa sem Governo, preferia invariavelmente a segunda alternativa. O mesmo Jefferson, aliás, para quem todo o governo, no sentido de sistema político, consiste na “arte de ser honesto”.
O episódio já é conhecido: em 1998, a Britar Lda. celebra um contrato com a Construções Técnicas (CT) e adquire um estaleiro, sito em Achada Grande Frente, mais os respectivos equipamentos. Desde essa altura, ocupou, sem a mínima oposição de quem quer que fosse, o referido espaço, onde prestou variadíssimos serviços aos munícipes e às empresas. Desde essa data, e à semelhança do que fazia a CT, pagou os devidos aforamentos à Câmara Municipal da Praia (CMP). Esta sempre os recebeu e passou os recibos da praxe, que, aliás, já foram exibidos na imprensa (inclusive o recibo referente a 2003).
Ora, sorrateiramente, sem avisar a Britar Lda., que já tinha posse pacífica e duradoura do local, a excelentíssima CMP vende o estaleiro à CVC!!! A acrobacia é manifestamente espantosa, já que esta última “venda” fez-se em 2001, enquanto a Câmara, até 2003, continuava a receber os aforamentos (“Money, that’s what I want”, cantaram os Beatles) da empresa Britar Lda. Simplesmente inqualificável. O caso (e nisso os juristas poderão dar o seu luminoso parecer) é capaz, inclusive, de configurar um crime de concussão, previsto e punido no artigo 368 do Código Penal. Efectivamente, temos, aqui, um funcionário público a receber, de um particular, dinheiro que não devia receber (visto que “vendeu” o estaleiro em 2001 à CVC). É uma espécie de “extorsão” às escondidas, tipo “conto do vigário” (ou será do vigarista?).
A Câmara Municipal (que, de acordo com o Estatuto dos Municípios, deve agir com base nos princípios da justiça, boa fé e transparência) passou por cima de todos os fundamentos de uma ordem jurídica civilizada. Não respeitou os investimentos feitos pela Britar nem lhe concedeu o direito de preferência, que um senhorio é obrigado a conceder a um simples inquilino, caso proceda à alienação da sua moradia. Sem olvidar o direito de adquirir o terreno por acessão, bem sublinhado pela advogada da Britar, conforme síntese publicada neste jornal no dia 22 de Abril corrente. Nada disso passou pela cabeça terceiro-mundista da CMP, uma Câmara apostada, segundo o seu prolixo e alegre presidente (que é alegre mas não pateta, longe disso), em ser o protótipo do “Japão em África”.
No município de Marbella, terra de elegância e turismo, aconteceu algo que devia inspirar o nosso Cabo Verde. É uma história de Estado de direito. Marbella, Espanha, onde a “rede” mafiosa do senhor Juan Antonio Roca, assessor de urbanismo do referido município, foi desfeita pela brilhante inquirição levada a cabo por um magistrado muito jovem, de apenas 30 anos de idade. Quando é que teremos um poder judicial assim? Quando é que teremos uma polícia bem apetrechada, capaz de investigar e prender os criminosos? Nessa magnífica operação, que envolvia corrupção, tráfico de influências, concursos públicos fraudulentos e especulação imobiliária, mais de vinte pessoas foram presas e mais de 2,4 milhões de euros apreendidos (centenas de obras de arte, jóias, prédios, carros de luxo, etc.).
Toda a gente sabe que, à semelhança do perverso Juan Roca, temos, em Cabo Verde, muito boa gente com um salário formalmente baixo que, entretanto, exibe admiráveis fortunas. Mas ninguém se preocupa com essa gente (usemos esta expressão por caridade cristã), que passeia bovinamente a sua glória por aí, prosperando, aliás, impunemente, numa estranha promiscuidade entre o público e o privado; “gozando” com o cidadão comum e contribuindo, poderosamente, para a erosão dos valores sociais. Numa atmosfera onde campeia a impunidade, o cidadão honesto é apenas um estúpido. E, por isso, uma ave rara. A transparência não compensa, e as crianças apercebem-se disso desde muito cedo. É por essa razão que os nossos jovens (num fenómeno que tive a felicidade de presenciar várias vezes) acham os seus amigos estrangeiros “infantis” e “pouco espertos”, porque eles “confiam demais”!...
Para cumprir a milenar convenção, vou terminar. Com um apelo mui singelo: Câmara Municipal da Praia, é hora de pintar a tua cara de vergonha! Eu, como diria um comentador português, ofereço-te a tinta para o efeito. Toda a tinta necessária. Dou-te, sem nada exigir em troca, a tinta para colorir o teu procedimento vergonhoso, aliás, de um oportunismo sem jaça. Quanto ao Tribunal, espero, tranquilamente, pela sua soberana decisão. Depois, saberei o que pensar dele.
*Os dois proprietários da empresa Britar Lda., digo-o por uma questão de honestidade, são meus parentes próximos. Mas não é isso que está em causa. Não se trata de formatar a “árvore genealógica” da família, mas, pelo contrário, denunciar, com factos e sóbria fundamentação, o absurdo e a pouca vergonha que, quais ervas daninhas, grassam por aí: em sítios onde menos se esperava!

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Jurista e Docente Universitário

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