AS EPÍSTOLAS DO SENHOR MINISTRO
O jornalista pergunta-lhe: “Quer dizer que a POP
e os tribunais estão ou estiveram de costas viradas?”, e ele,
visivelmente atrapalhado, responde: “... devo reconhecer que nem sempre
houve relações de excelência entre a POP e o Ministério Público (...)”.
A confusão é monumental, porque o “Ministério Público” nada tem a ver
com os “tribunais”. A pergunta do jornalista era clara, e tinha a ver
com os “tribunais”. O “Ministério Público” não é órgão de soberania, e
não tem competência para “soltar” ou condenar eventuais delinquentes. A
sua função é outra, e o dr. Júlio, pelas funções que exerce, devia
saber isso. O ponto mais alto da falta de preparação é, contudo,
atingido mais à frente, quando o preclaro ministro deixa esta autêntica
lição de sapiência aos “jovens magistrados”, e não só: “O crime não se
compadece com questões sebentárias dos tempos de universidade”
Na sua entrevista ao jornal “A Semana” (edição
de 14 de Abril), o ministro da Administração Interna, Júlio Correia,
revela “aspectos” altamente preocupantes, num Estado de direito, que
não deixam ninguém indiferente. Um ministro é alguém que, no nosso
sistema político, assume funções da mais alta responsabilidade. Ele é
responsável perante o chefe do Governo, como é responsável perante a
nação. A sua actividade, aliás, não é discricionária. Pelo contrário: é
vinculada, regida por normas imperativas prescritas pela Constituição
da República.
Um ministro que se movimenta fora das regras
constitucionais não só perde cotação pessoal como se coloca ao nível de
um salteador de esquina. Perde dignidade, perde compostura, perde a
dimensão de estadista. Perde-se e faz-nos perder como “polis”. Um
ministro que finta o dever, inerente à sua função, é um perigo para a
República, uma ameaça solene aos fundamentos legais da Liberdade; age,
assim, por sua conta, e rompe a fronteira da ordem pública civilizada.
Júlio Correia, nessa entrevista, mostrou a
verdadeira face. A face de um ministro fanfarrão, mistificador e
arrogante, cujo espírito, todavia, nunca se distanciou dos padrões de
um burocrata timbrado pela “forma mentis” do autoritarismo. Sabe
manejar alguma estatística (haverá manga-de-alpaca que não o saiba?),
mas, no essencial, no âmago das funções do Estado moderno, mostra uma
fraqueza surpreendente, e um populismo de vão de escada, revelando
falta de classe para estar no sítio em que está.
Ouçamos esta bela frase do ministro: “Não vale a
pena... capturar os elementos que promovem o banditismo urbano... para
serem presentes ao poder judicial e de seguida vê-los colocados outra
vez na rua. Isto, temos de admitir, concorre para a fragilização da
autoridade policial”.
À primeira vista, faz todo o sentido. Se Diderot
a escutasse, era, pela certa, “entrada” com lugar cativo na
“Enciclopédia” do iluminismo francês. Mas, bem vistas as coisas,
trata-se apenas de um disparate “juliano”, pronunciado em bicos de pé.
Vamos supor que a Polícia captura, na cidade da Praia, três “elementos
que promovem o banditismo urbano”. Todos eles são menores, 14 anos de
idade. Sua excelência acha que o juiz deve pô-los na prisão
Não. Porque são inimputáveis em razão da idade. O juiz não é pago, ao
contrário dos políticos (alguns, pelo menos), para violar a Lei.
Se o juiz manda soltar um indivíduo é porque,
até ver, os pressupostos do “direito de prender” não se encontram
preenchidos. A não ser que o sr. ministro queira suprimir a actividade
de controlo própria da magistratura judicial. Então, que enfie,
abertamente, a carapuça. O que o poder político deve fazer é trabalhar
no sentido da reforma da chamada “Justiça de Menores”, adaptando, se
possível, a legislação vigente às novas realidades do tempo presente.
Em vez de sublinhar este aspecto crucial, Júlio prefere a demagogia
fácil, repetindo a conversinha tola de botequim. Não fica bem a um
ministro. Envergonha-nos profundamente. Se prestasse mais atenção,
podia aprender algo com o seu “colega” português, Alberto Costa, para
quem a eficácia da Polícia é medida, unicamente, pelo número de
condenações efectuadas pelos tribunais. (Na volta de Bruxelas, faça uma
paragem em Lisboa e fale com ele; não se esqueça de levar a caderneta
de bolso, e tome apontamentos). É assim num Estado de direito bem
organizado, caro Júlio. Não pode ser doutra forma. Ou quer voltar aos
tempos áureos do Partido Único, em que a polícia política (do seu
partido) prendia sem justa causa, mandava e desmandava? A saga
continua, em tom kafkiano. E eis que o dr. Júlio, ciente das
reclamações e do seu fraco desempenho, passa a batata quente aos
outros. A culpa não é dele, ora bolas! É dos “jovens magistrados”. O
jornalista pergunta-lhe: “Quer dizer que a POP e os tribunais estão ou
estiveram de costas viradas?”, e ele, visivelmente atrapalhado,
responde: “... devo reconhecer que nem sempre houve relações de
excelência entre a POP e o Ministério Público (...)”. A confusão é
monumental, porque o “Ministério Público” nada tem a ver com os
“tribunais”. A pergunta do jornalista era clara, e tinha a ver com os
“tribunais”. O “Ministério Público” não é órgão de soberania, e não tem
competência para “soltar” ou condenar eventuais delinquentes. A sua
função é outra, e o dr. Júlio, pelas funções que exerce, devia saber
isso. O ponto mais alto da falta de preparação é, contudo, atingido
mais à frente, quando o preclaro ministro deixa esta autêntica lição de
sapiência aos “jovens magistrados”, e não só: “O crime não se compadece
com questões sebentárias dos tempos de universidade”. É como se o dr.
Júlio, ganhando altura repentina, lhes tivesse dito: “deixem lá essas
parvoíces do professor Figueiredo Dias, Klaus Roxin ou Germano Marques
da Silva; deixem essa treta da Constituição e das garantias da pessoa
humana; façam o que eu vos peço”. Para além do tom populista da
“mensagem”, inaceitável num Estado fundado na dignidade humana,
configura uma forma subtil de “pressão” sobre os tribunais (no fundo,
era aos “tribunais” que o dr. Júlio queria dirigir-se, quando disse,
sem querer, “Ministério Público”...). Cereja no cimo do bolo: o
ministro reclama “um outro nível de coordenação” com o poder judicial.
Pois... Mas qual “nível de coordenação”? O tribunal (ou o Ministério
Público) faz parte da “hierarquia administrativa”?! “Coordenar” o quê?
Como? O ministro não diz. Talvez porque esse “nível” não exista, na
actual organização do Estado. Habilidoso, lá vai, contudo, pressionando
por outras vias. Escreve “cartas” ao Supremo Tribunal de Justiça e à
Procuradoria Geral da República. Desde o “ano passado”, confessou. Com
que base? Com que fundamento? Ninguém sabe. Em vez de disciplinar a sua
corporação, e dar meios e preparação adequada à Polícia, o ilustre
ministro repete tolices de outros tempos, hoje perfeitamente
inadmissíveis. Alguém lhe empresta uma “sebenta” sobre a essência da
actividade policial num Estado de direito?
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