quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

IMPOSTURAS E FACHADA DEMOCRÁTICA

Após longa ausência, Casimiro de Pina reaparece com um texto de imensa profundidade. Faz uma análise de fundo sobre a sociedade e a política em Cabo Verde, nos seus pontos mais relevantes de uma forma que só ele o sabe fazer. Enquanto por cá a má-língua, melhor dizendo, os escribas de serviço propagandístico, em jornais “ziguezagueados”, inventavam e noticiavam pretensos insucessos e incapacidades, Casimiro de Pina, do outro lado do Mundo, em Macau, estudava dedicadamente e alcançava excelentes êxitos académicos. Demonstrava toda a sua intelectualidade e surpreendia famosos professores de Universidades com prestígio como é o caso da Universidade Coimbra. Liberal, brevemente, numa iniciativa inédita, irá publicar um relatório escolar de Casimiro de Pina, que foi o melhor classificado

“Tanto faz, pois, dizer: em tal data manda o homem, tal povo ou tal grupo..., como dizer: em tal data predomina no mundo tal sistema de opiniões – ideias, preferências, aspirações, propósitos.” – Ortega Y Gasset
Um espectro paira sobre Cabo Verde: é a formidável mancha da fraude e da mais sofisticada mentira demagógica.
A triste realidade, todavia, é que as boas almas e os “analistas” não prestam atenção ao xadrez do poder. Ficam pelas conversas de salão, pela doce tagarelice e por um coro de denúncias tão vazio quão imprestável. Em suma: um Governo trapaceiro e autoritário, uma oposição entediante.
Querem um exemplo? Vejam o que faz a liderança do grupo parlamentar do MpD, sob o olhar silente da Comissão Política. Perante ataques repetidos e desvairados do sr. José Maria Pereira Neves, descredibilizando o edifício ideológico e político da década de 90, o círculo “oposicionista” limita-se, num aceno de incompetência, a “denunciar” mais uma ligação do Governo ao escândalo Y ou Z! O pessoal não entende a diferença entre poder e eleições. É embaraçoso. Nunca leram Olavo de Carvalho?
A malta não percebe que o PAICV não está interessado apenas em ganhar eleições. O PAICV quer é poder. P-O-D-E-R. Mais ainda: H-E-G-E-M-O-N-I-A. Vou explicar: controlar as mentes. Manipular a miséria intelectual reinante; id est, transformar o programa do PAICV em “kultura” cabo-verdiana.
O MpD é o pescador solitário com o seu anzol, à procura de um peixe qualquer. Confia na sorte e na “crise financeira internacional”! Propõe o “salário mínimo”. Com um pouco mais de esforço, lá estaríamos bem perto da Crítica do Programa de Gotha, de 1875. 

Gramsci: a imprensa e a cultura ao serviço da propaganda totalitária, sob a fachada do "consenso geral" e da democracia


O PAICV, guarnecido com a técnica da “guerra assimétrica” e da “inversão revolucionária”, faz, por sua vez, uma pesca de arrasto, levando quase tudo na sua rede.
E, por isso, educa toda uma militância, domina o aparelho universitário, seduz e intimida os “homens de cultura”, trabalha a Psicologia das Multidões e impregna, mediante a subtil estratégia Gramsciana, o imaginário ilhéu, com a sua mística e os seus velhos símbolos. Você pode até ganhar eleições. Mas se é o seu adversário quem manda, quem controla as instituições e as verdadeiras fontes do poder, pode ser escorraçado no minuto seguinte, ao primeiro estalar de dedos da parte contrária.
O pobre Collor de Mello ganhou as eleições no Brasil. Mas a sua situação política era tão frágil que, assobiado pela forte máquina propagandística do PT, caiu que nem um patinho. A Justiça, diga-se, ilibou Collor a 100%, mas ele não tinha poder, percebe amigo? Nunca mais se falou disso.
Enquanto isso, sob a bandeira da “ética” (recorde-se que o “partido ético” é uma criação de Antonio Gramsci...), o sr. Lula da Silva e os seus homens preparavam o assalto ao poder, construindo, logo depois, a maior rede de corrupção de sempre da história brasileira, de que o “Mensalão” é apenas um exemplo eloquente.
Cabo Verde é, hoje, a imagem perfeita do PAICV: um Primeiro-Ministro (sim, esse cavalheiro!) que comete vários crimes e pavoneia-se, elegantíssimo, no mais incrível lamaçal da impunidade; ele aponta o “caminho”. A Neveslândia é a escola do crime sem castigo.
“...afastada a justiça, que são, na verdade, os reinos senão grandes quadrilhas de ladrões?” - A cidade de Deus, Livro IV, p. 383[1].
Mas quem quer compreender as razões de fundo? Quem quer perceber A Origem da Tragédia e da desmoralização da Justiça? Uma névoa confortável obscurece a multidão e garante o andar “tranquilo” da maquinaria oficial!
O panorama é, assim, uma confluência de erros graves e abdicações perniciosas.
Uma vez que a malta não é propensa à investigação filosófica (ou seja, à compreensão fundamentada e abrangente dos problemas humano-sociais[2]), posso apresentar breves exemplos e comentários que talvez ajudem a iluminar o quadro:
a) Onésimo Silveira, no cume mesmo da charlatanice, escreveu, num jornal da praça, que o “Partido Único” foi um mero acidente da História, algo que teve a sua “razão” de ser, etc.. Ora, que eu saiba, ninguém reagiu; ninguém disse patavina a esse respeito. As razões da inércia do círculo “oposicionista” são, fundamentalmente, duas: incapacidade analítica, porque isso obrigaria o “homo politicus” a fazer, num exercício exigente de “descodificação”, um giro profundo à volta de três séculos de História das Ideias, para “situar” e combater, eficazmente, a impostura silveiriana; ilusão de óptica, esquecendo que, a longo prazo (ou talvez menos) e do ponto de vista do imaginário colectivo, opiniões como essa do Dr. Onésimo são altamente destrutivas, com aquele fundo de cinismo que mina, pela base, tudo aquilo que é a cidadania e o ideal democrático. O Partido Único não foi, porém, nenhuma “dádiva” da história. Não, seu charlatão. Não é a “história” que faz o Homem. É, pelo contrário, o Homem quem faz (e constrói) a história. A ditadura do Partido Único foi um regime político imposto por um grupo de pessoas, de acordo com um certo catecismo ideológico e no interesse exclusivo de uma casta jurássica e “revolucionária”. Onésimo, qual raposa velha, faz política (sob o chapéu de Maquiavel, é claro); ele sabe o que significa “longa duração” e conhece todos os degraus da Dezinformatsya. O MpD só pensa nas próximas eleições. Depois, com ar de espanto, a malta “oposicionista” ainda há-de gritar ao mundo: “Ah, este povo é insensível; não quer saber dos abusos do PAICV, oh! vejam, esse partido é tão malvado!”. Regra n.º 1: um ouvido não educado não pode ouvir Bach ou Pat Metheny...
b) O discurso do sr. José Maria Neves, retomado por um exército apreciável de seguidistas, sicofantas e afins, é mais ou menos este: o MpD não tem “alternativa”. Vocês podem criticar o PAICV, mas não têm um “programa” alternativo! Com mais ou menos pintura, é este o discurso-chave do PAICV, o conto de carochinha erigido em novíssima e indiscutível “palavra-de-ordem”. E o que faz o MpD? Pois, exactamente aquilo que o sr. José Maria quer! Critica de forma avulsa (muitas vezes sem qualquer conteúdo ideológico, e assim pouco cativante), aponta uma ou outra falha na governação, e deixa o PAICV com o monopólio da “alternativa”. Ou seja, com o “poder simbólico” determinante, que lhe permite “gerir” o sistema à-vontadinha;
c) O pessoal é incapaz de perceber que o sr. José Maria Neves está a usar, no altar da mistificação, um truque de pacotilha que todos os partidos de formação totalitária usam com desvelo: a inversão revolucionária, que consiste, basicamente, em atribuir todos os defeitos possíveis ao adversário, ao mesmo tempo que o “partido ético”, num golpe perspicaz (“tour de force”, diriam os franceses), lhe rouba as virtudes decisivas. Ora, o programa económico (rompendo com a “teoria da dependência”, cunhada pela CEPAL, e o “estatismo” marxista, que bloqueava o investimento privado), a defesa das liberdades, a separação dos poderes, o primado da Constituição, a descentralização, a inserção do país na actual vaga de globalização, a integração no espaço euro-atlântico das democracias (com tudo o que isso implicou para Cabo Verde, desde o “acordo cambial” e a aceitação dos critérios macro-económicos de Maastricht à reconfiguração das prioridades diplomáticas), etc., são tudo, sem excepção, criações do MpD. Melhor: foi este partido, por mais defeitos que tenha, que introduziu o ideário Iluminista e liberal nas ilhas de Cabo Verde.
d) Quem não tem qualquer alternativa é, por conseguinte, o PAICV, forçado a seguir um sistema político e económico que combateu durante 15 anos de ditadura. O PAICV vai retocando aqui e ali, senta-se à mesa com o FMI, critica vagamente a Constituição de 1992, invoca a retórica da “transformação” (fagulho de demagogia! – vide o artigo demolidor de Paulo Monteiro Jr: www.expressodasilhas.sapo.cv/noticias/detail/id/6721), simula pulos de “modernidade”, afivela novas máscaras, mas é absolutamente incapaz de inovar. É um facto: o PAICV está há 17 anos sem alternativa. Um provérbio inglês que Lenine gostava de citar: “Os factos são teimosos”. Pois são, senhor. “On ne change pas la vérité par décret”.
e) O caudal de fraudes (fraudes eleitorais, falsificação de atestados médicos...), corrupção, clientelismo, pobreza e ameaça à independência do poder judicial é apenas o sinal do embate desse partido-Estado contra a “Constituição da Liberdade” (no sentido de Hannah Arendt). Existe, de qualquer forma, uma diferença abismal entre aquele que introduz as ideias centrais (as balizas, afinal, do próprio sistema político) e o amanuense que faz a mera “administração das coisas”. O primeiro dá o tom; o outro dança simplesmente. E muitas vezes fora do tom, ó cambada.
f) A “inversão revolucionária” é feita, contudo, de forma tão descarada que deixa as sereias do “politicamente correcto” confusas. Atreladas a um “economismo” de vulgata, elas proclamam: “ah! mas o PAICV aceitou a economia de mercado”. Não percebem que, para os politicantes do PAICV, isso é apenas um meio, e não uma opção de fundo; um meio utilíssimo para enriquecer a clientela e fortalecer o poder do partido-Estado. O “rent-seeking” é a base do sistema. Da adjudicação de obras milionárias sem concurso público ao financiamento selectivo de certas “associações”, tudo se insere, milimetricamente, nessa vasta cadeia alimentar que é a “economia política” da corrupção.
g) Livros, trabalho meticuloso. O MpD não precisa de “alternativa”, porque é, como expliquei no ponto anterior, a única alternativa política existente em Cabo Verde desde 1991. Precisa é de livros. História dos movimentos revolucionários; a teoria do Estado[3] e a Escola do Direito Natural; o pensamento político; a Tradição da Liberdade e as suas grandes referências, de Adam Smith a Alain Peyrefitte; a estratégia pós-nacional; o governo representativo; a hermenêutica, de Gadamer a Paul Ricoeur; a “paralaxe cognitiva” e os seus efeitos; a filosofia moral e as Artes Liberais (especialmente, o estudo da Lógica, da Gramática e da Retórica); ler, enfim, as análises de Jeffrey Nyquist. Se você não possui muitos conhecimentos, ao menos rodeie-se daqueles que percebem alguma coisa do assunto. Como é triste ver uma direcção parlamentar a hostilizar, directa ou indirectamente, figuras como Humberto Cardoso. Neste “transitivo presente”, uma época de tantos desafios, precisamos, ainda mais, de pessoas criativas e capazes, e honestas. Sem profundidade, sem talento, a política transforma-se numa miserável disputa pessoal, ou numa “mecânica” muito próxima do compadrio.
Na solidão íntima da sua consciência, o verdadeiro político (“o homem com vocação política” de que falava Weber) contempla todavia o xadrez; e pensa. Pressente a “altura do tempo”, olha calmamente em redor. O “homo politicus” penetra nas estruturas sociais mais recônditas. Percebe a raiz dos problemas; por fim, avalia as muralhas e as fundações da Cidade.
Serão sólidas?
E quando vierem os bárbaros?
Os figurantes saltitam e ficam no mesmo lugar. Jogam. Business as usual...
[1] Cit. por Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, Almedina, Coimbra, 2007, p. 27
[2] Filosofar é, pois, o “levantar do véu”, o derrube das falácias, por meio da “sapienza” – a “religação” dos saberes, na fina intuição de um Edgar Morin.
[3] Um livro fascinante nessa matéria é o “Constitutional failure: Carl Schmitt in Weimar”, de Ellen Kennedy (Duke University Press, 2004).

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Jurista e Docente Universitário

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