JANER CRISTALDO: VACINA CONTRA A IMPOSTURA
Hoje, proponho-vos um exercício interessante.
Trago-vos um texto sóbrio de um grande escritor e jornalista
brasileiro, Janer Cristaldo. O seu estilo é elegante, lembrando aquela
forma quase perdida de narrar factos, típica de um Voltaire, na sua
história filosófica, ou Jonathan Swift, com a sua ironia sagaz e
cortante. Cristaldo fala-nos do Chile da década de 80, período da
ditadura militar, e faz comparações com o Brasil de então e outros
países. Como ele escreveu, “O homem só conhece comparando”. No fim,
cita um livro esquecido de Garcia Márquez, grande crítico de Pinochet e
amigo íntimo de Fidel Castro. Leiam, por favor. O texto é magnífico
Na semana passada, publiquei, neste jornal, um
apontamento sobre o percurso ambíguo de Augusto Pinochet, realçando a
maldade da sua ditadura e o seu contributo para o crescimento e a
prosperidade do Chile. Deixei bem claro, para os que sabem ler, e cuja
visão não está contaminada pela má-fé, que não há nada que possa
justificar uma ditadura e a violação sistemática de direitos universais
sagrados.
A ditadura política é um mal que deve ser combatido pelos homens de boa vontade.
Mas, e isso aborreceu algumas aves raras,
realcei o contributo positivo de Pinochet, nomeadamente no plano
económico, quando, sob a influência do pensamento liberal de Milton
Friedman e dos “Chicago boys”, fez determinadas reformas que lançaram o
Chile num período de grande prosperidade. É proibido dizer a verdade?
Realmente, muitas almas boas, possuídas pela pústula do totalitarismo,
recusam a verdade. Dispensam os factos.
Nada de novo: Václav Havel, político insuspeito,
que viveu o comunismo por dentro e lutou incansavelmente pelos direitos
humanos no Leste europeu, já tinha sublinhado este aspecto. O sistema
comunista, para além da mais feroz ditadura e dos campos de
concentração (bem descritos por Soljenitsyne, autor do célebre “O
Arquipélago Gulag”), baseia-se, essencialmente, na mentira. Na mentira
como forma de governo e controlo de consciências. Daí a abolição da
liberdade de imprensa. O totalitarismo é a negação sistemática da
verdade. É a manipulação como método constitucional. Os “slogans”, no
universo mental estalinista, substituem a realidade, criando um mundo
outro, virtual e inexistente. As palavras de ordem (dos kamaradas)
criam um planeta à parte, abrigo seguro dos utópicos alienados. Raymond
Aron falou, e muito bem, do “ópio dos intelectuais”. É isso. Eu não
quero ingerir drogas que obscurecem a razão.
Para mim, o mais importante é contar a história
como ela é. Não pretendo agradar esta ou aquela capelinha
fundamentalista. Tento ser justo. A minha meta é a objectividade.
Outra coisa, que caiu mal no seio dos herdeiros
do socialismo totalitário, foi eu ter dito que, afinal, há ainda muitos
“Pinochets” por aí, adoradores da religião marxista. Esses, porém,
apesar dos seus crimes hediondos e repetidos, beneficiam, quem diria!,
de uma espécie de amnistia moral permanente. Para eles, reina a
impunidade indiscutível, como se fosse dogma teológico. Nunca são
criticados. Contra eles, não há mandados de captura internacionais.
Nenhum juíz espanhol pede o seu julgamento e condenação. É um fenómeno
estranho que exige uma meditação serena, como prova de civilização.
Hoje, proponho-vos um exercício interessante.
Trago-vos um texto sóbrio de um grande escritor e jornalista
brasileiro, Janer Cristaldo. O seu estilo é elegante, lembrando aquela
forma quase perdida de narrar factos, típica de um Voltaire, na sua
história filosófica, ou Jonathan Swift, com a sua ironia sagaz e
cortante.
Cristaldo fala-nos do Chile da década de 80,
período da ditadura militar, e faz comparações com o Brasil de então e
outros países. Como ele escreveu, “O homem só conhece comparando”. No
fim, cita um livro esquecido de Garcia Márquez, grande crítico de
Pinochet e amigo íntimo de Fidel Castro. Leiam, por favor. O texto é
magnífico. Fiz uma ligeira adaptação da grafia, de acordo com a norma
corrente em Cabo Verde, que, aliás, em nada altera o respectivo
conteúdo original. O artigo de Cristaldo está disponível no seguinte
jornal electrónico: www.midiasemmascara.org (Notícias de Jornal Velho: Santiago, Segundo Littin)
O texto de Janer Cristaldo
A VISÃO DE UM MILITANTE DE ESQUERDA SOBRE A CAPITAL CHILENA, SANTIAGO, NA DÉCADA DE 1980
Santiago do Chile - A cidade é feia, pobre e
suja. Pelos buracos e lixo acumulado nas amplas avenidas, adivinha-se
uma capital que um dia foi próspera e cujos habitantes desfrutaram, num
passado pouco distante, um alto nível de vida. Cidadãos pobremente
vestidos, em seus ternos ainda restam farrapos de dignidade - e nada
mais triste do que ver um homem cheio de remendos, mas elegantemente
vestido, estendendo a mão súplice para pedir alguns centavos. Lojas
vazias, de vazias e tristes vitrines, restaurantes entregues às moscas,
garçons olhando para nada. Mal o sol se põe sobre o Pacífico, a capital
escurece e os raros privilegiados da tirania se escondem em suas tocas,
temerosos da fome e da justa violência dos deserdados. Mesmo durante o
dia, nota-se tensão e medo nos rostos e gestos, como se alguém que
agora circula livremente pelas ruas, no momento seguinte, sabe Deus lá
por que razões, pudesse estar algemado nos porões da ditadura. Um
exército parece ter posto suas patas sobre a cidade. Estou em Santiago
do Chile. Do Chile de Pinochet.
O poder do tirano é omnipresente. Em um país
privilegiado pelos deuses, que por sua geografia se permite quatro
estações simultâneas, mar e montanha, deserto e neve, os tentáculos da
ditadura envolvem o território todo, manifestando-se principalmente na
capital. Raríssimas bancas de jornais exibem apenas a imprensa
laudatória ao regime. Jornais de oposição, nem em sonhos. A imprensa
internacional está banida do país e só pode ser adquirida em hotéis de
luxo, onde o cidadão comum só pode entrar se estiver disposto a sérios
interrogatórios pela polícia do regime ao sair, mesmo que saia sem
jornal algum. As raríssimas livrarias, de paupérrimas estantes, exibem
não mais que literatura técnica e alguma ficção de escritores
coniventes com a ditadura.
Miséria, lixo, decadência, medo, opressão,
silêncio, desconfiança: estes são os odores que todo o visitante,
isento de quaisquer preconceitos ideológicos, respira em um rápido giro
por Santiago. Mas as cidades são como árvores, quem quiser destruí-las
terá de cortar-lhes as raízes. Estão vivas as raízes de Santiago. Que
um dia será Salvador. Salvador Allende.
Terminasse eu aqui esta crónica, sem ajuntar
sequer uma linha a mais, conquistaria plateias e simpatias, sem falar
em tribunas, lugar ao sol e quem sabe até mesmo uma sinecura num órgão
público qualquer. Acontece que estaria mentindo, transmitindo, é
verdade, uma mentira que todos gostam de ouvir. Como não gosto de
mentir, renuncio a eventuais simpatias e passo a contar o que vi.
Para quem está acostumado a bater pernas pelas
ruas de cidades como Porto Alegre ou São Paulo, Santiago exerce um
poderoso impacto pela conservação e limpeza de suas ruas e passeios.
Nas capitais brasileiras, há muito resignei-me a enfrentar ruas sujas e
esburacadas, sem falar no lixo quotidiano nelas jogado por transeuntes
sem noção alguma de cidadania, meros habitantes, nefastos usuários da
cidade. Passear pelas margens do Mapocho - rio que atravessa um
aglomerado de cinco milhões de almas - respirar milagre, suas águas
preservam a limpidez com que descem da Cordilheira. Para quem sofre a
Beira-Mar Norte de Florianópolis - já nem falo do riacho Ipiranga ou
Tietê - o Mapocho mais parece miragem de viajante perturbado pela
travessia dos Andes.
Pelo Paseo de la Ahumada, rua Estado, Huérfanos,
uma fauna humana e bem vestida (insisto em dizê-la humana, pois os
transeuntes das ruas centrais do Rio ou São Paulo, sem ir mais longe,
mais parecem animais machucados na luta pela vida) que há muito não se
vê nas metrópoles da América Latina. Antes de Santiago, estive em
Buenos Aires e a outrora elegante Florida, hoje, proporções à parte,
mais parece rua Direita ou Nossa Senhora de Copacabana. Deixada de lado
a agressão idiota - mas não perigosa - de cambistas à cata de divisas
fortes, senti no centro de Santiago sensação que brasileiro algum pode
hoje sentir em nossas capitais: a sensação de segurança. As ruas da
capital chilena têm um ar de praça; nela vi velhos, jovens e crianças
sentados, degustando sorvetes e o espectáculo da rua em si, tanto à
tarde como à noite, sem preocupação alguma com assaltos ou violência
gratuita. Para mim, que já penso duas vezes quando em Porto Alegre ao
atravessar a Borges e a Praça XV para frequentar o Chalé à noite,
Santiago me fez evocar a Praça da Alfândega dos anos 60, quando
filosofávamos madrugada adentro preocupados com a enteléquia
aristotélica ou o ser em Sartre, jamais com punhais ou revólveres.
Outra surpresa, e das melhores, os quiosques de
jornais e revistas. Penso que tais quiosques são uma excelente
amostragem da cultura e liberdade de expressão de um país, neles
podemos auscultar que tipo de informação consomem os cidadãos e, ao
mesmo tempo, que qualidade ou quantidade de informação não proíbe o
Estado de ser consumida. Pois bem: nesta Santiago, que imaginava cidade
sitiada e sob censura, vi nas bancas uma profusão e diversidade de
jornais que sequer encontrei em Paris ou Madrid. Jornais em cirílico do
Leste europeu, imprensa de toda a Europa, Escandinávia, Alemanha,
França, Itália, Espanha, Estados Unidos, América Latina, Brasil.
Sabendo como esta imprensa toda é gentil a Pinochet, o espanto do
turista vira perplexidade. E mais: jornais chilenos malhando, em
primeira página, a ditadura. Ocorre-me evocar os quiosques tristes e
monocórdios que vi em cidades do Leste europeu, mas nem preciso ir tão
longe. Nenhuma banca do Rio ou São Paulo, neste Brasil 88, me oferece
tal quantidade e diversidade de informação.
Livrarias imensas, bem sortidas, onde não faltam
livros de Fidel Castro ou Garcia Márquez, o mais ferrenho adversário de
Pinochet e, curiosamente, defensor incondicional do ditador cubano.
Tampouco faltam nas prateleiras obras de José Donoso ou Isabel Allende,
isso para citar apenas dois opositores do regime chileno, já conhecidos
do leitor brasileiro. O que é no mínimo insólito em uma ditadura.
Nas vitrines e gôndolas das mercearias, víveres
e bebidas do mundo todo, desde arenques do Báltico a foie gras trufado,
dos mais diversos uísques da Escócia a vinhos alemães, franceses,
italianos, espanhóis. E chilenos, naturalmente. Preços? Abordáveis.
Para se ter uma ideia, pode-se comprar um scotch - com a certeza de que
não são da reserva Stroessner - a partir de dez dólares, ou seja, o
preço de um Natu Nobilis hoje. Que mais não seja, qual intelectual de
esquerda não gostaria de viver em uma sociedade onde uma dose de um bom
escocês custa, em bares, um dólar? Conheço não poucos exilados
traumatizados com a democrática França de Mitterrand, onde um gole de
uísque só é viável a partir dos cinco dólares. Piadas à parte, a farta
oferta de tais produtos evidencia uma sociedade habituada a comer bem e
com requinte, afinal comerciante algum seria insano a ponto de importar
iguarias para turista ver.
Contava eu estas e outra coisas a uma moça ilhoa
e bem-nascida, cidadã da Santa e Bela Catarina, dessas que julgam ser
todo empresário um canalha, mas que jamais recusam uma cobertura
facilitada por um pai empresário, dessas que jamais subiram o morro do
Mocotó mas estão preocupadas com a colheita do café na Nicarágua, em
suma, falava eu com um espécime típico da raça que chamo de os Novos
Cafeicultores, e a objecção - a primeira objecção - caiu como um raio:
- E a miséria? Aposto que não foste visitar os bairros pobres, a
periferia de Santiago.
Tinha razão em parte a jovem cafeicultora. Não
visitei os bairros pobres de Santiago, afinal se troco as margens do
Atlântico pelas do Pacífico, não será para ver miséria que conto meus
parcos dólares. Não tenho a psicologia do francês médio, por exemplo,
que mal chega ao Brasil quer visitar favelas. Este comportamento, a meu
ver doentio, parece-me ser vício de europeu inculto e de consciência
pesada, que insiste em ver a miséria do Terceiro Mundo que explora,
para depois contribuir com avos de seu bem-estar para guerrilhas
suicidas. Se junto meus trocados para visitar um país, quero receber o
que de melhor esse país tem a oferecer-me. Nos anos que vivi em Paris,
descia certa vez de Montmartre e enveredei pelas ruelas da Goutte d'Or,
enclave árabe e paupérrimo que se alastra na cidade como mancha de
óleo. Senti-me, de repente, em um território miserável para o qual
jamais teria pensado em viajar, que mais não seja não será minha
indignação ou revolta que resolverá o problema árabe na França. Dei
meia volta, enfurnei-me na primeira boca de metrô e só voltei à
superfície na Rive Gauche, a margem que mais me fascina do Sena. Não,
não vi a miséria de Santiago. Mas consolei a cafeicultora: podes estar
certa de que miséria existe, pois miséria está presente em qualquer
metrópole do mundo.
Ela sorriu por dentro, parecia dizer: que bom
que existe miséria em Santiago. O que me deixou um tanto perplexo, eu
sorriria intimamente se soubesse que não existe miséria em lugar algum
do mundo, independentemente de regimes políticos ou ideológicos. Ela,
por sua vez, admitia a veracidade de meu relato. Ajuntei que a inflação
era de seis por cento. Quando digo isto a um brasileiro, a reacção
normal é: "seis por cento ao mês?" Acontece que é seis por cento ao
ano. Isto é sonho que, brasileiros, já nem ousamos sonhar. Se eu passar
a alguém os preços de um restaurante que visitei em Santiago no mês
passado, e se este alguém visitar o Chile no ano que vem, é provável
que os preços continuem os mesmos ou, no máximo, tenham variado em
torno de uns dez por cento a mais. Cá entre nós, não conseguimos
recomendar para amanhã um restaurante no qual comemos ontem. Caiu,
então, fulminante, a segunda objecção: - Sim. Mas que preço pagaram os
chilenos por este bem-estar?
Houve, no Chile, um assalto marxista e armado ao
Estado e negá-lo é paranóia. Deste confronto resultaram, segundo
alguns, dez mil mortes. Segundo outros, quarenta mil [*]. De qualquer
forma, um preço infinitamente inferior ao preço pago pelos russos a
Josiph Vissarionovitch Djugatchivili - que oscila entre vinte e
sessenta milhões de cadáveres - para dar no que deu: uma confederação
forçada de países pobres, alguns vivendo a nível de fome, como a
Roménia e a Albánia. Bem mais barato que o preço pago pelos cambojanos
a Pol Pot: dois milhões e meio de mortos, num país de cinco milhões de
habitantes, e disto não mais se fala. Sem falar que os que ficaram se
jogam ao mar em jangadas, enfrentando tempestades, tubarões e piratas,
ou já esquecemos os boatpeople? Sem falar nos que matou Castro - número
que nenhum Garcia Márquez aventa - para instalar no Caribe seu gulag
tropical. Em Cuba também há farta escolha de bebidas e géneros
alimentícios. Mas só o turista pode comprá-los, e com dólar. O cidadão
cubano fica chupando no dedo. Nas praias, cheias de peixe, não há
actividade pesqueira alguma, pois quem tem barco vai para Miami.
- Justificas então tais mortes? - quis saber a
moça - referindo-se, é claro, aos mortos do Chile, já que tornou-se
tácito, para os fanáticos contemporâneos, que é lícito fazer correr
sangue de certas pessoas e criminoso o de outras. Em suma, para usar
dois conceitos que não me agradam, porque multívocos, é perfeitamente
permissível fazer jorrar sangue da assim chamada direita e constitui
sacrilégio, quase tabu, sangrar a assim chamada esquerda. Não justifico
morte alguma, a humanidade tem pelo menos uns três mil anos de
experiência histórica, milénios suficiente, parece-me, para concluirmos
que não é matando que se chega a erigir a cidade humana.
- Cristaldices! - jogou-me na cara minha
cafeicultora, digo, interlocutora. Pode ser. Chamo então um cineasta
exilado que voltou clandestinamente ao Chile, em depoimento tomado por
Gabriel Garcia Márquez, intitulado A Aventura de Miguel Littín
Clandestino no Chile, já traduzido ao brasileiro por Eric Nepomuceno e
encontradiço em qualquer livraria. No capítulo significativamente
intitulado "Primeira desilusão: o esplendor da cidade", depõe Littín:
- Eu atravessei o salão quase deserto seguindo o
carregador que recebeu minha bagagem na saída, e ali sofri o primeiro
impacto do regresso. Não notava em nenhuma parte a militarização que
esperava, nem o menor traço de miséria (...). Não encontrava em nenhuma
parte o aparato armado que eu tinha imaginado, sobretudo naquela época,
com o estado de sítio. Tudo no aeroporto era limpo e luminoso, com
anúncios em cores alegres e lojas grandes e bem sortidas de artigos
importados, e não havia à vista nenhum guarda para dar informação a um
viajante extraviado. Os táxis que esperavam lá fora não eram os
decrépitos de antes, e sim modelos japoneses recentes, todos iguais e
ordenados.
Mais adiante:
- Na medida em que chegávamos perto da cidade, o
júbilo com lágrimas que eu tinha previsto para o regresso ia sendo
substituído por um sentimento de incerteza. Na verdade o acesso ao
antigo aeroporto de Los Cerrillos era uma estrada antiga, através de
cortiços operários e quarteirões pobres, que sofreram uma repressão
sangrenta durante o golpe militar. O acesso ao actual aeroporto
internacional, em compensação, é uma auto-estrada iluminada como nos
países mais desenvolvidos do mundo, e isto era um mau princípio para
alguém como eu, que não só estava convencido da maldade da ditadura,
como necessitava ver seus fracassos na rua, na vida diária, nos hábitos
das pessoas, para filmá-los e divulgá-los pelo mundo. Mas a cada metro
que avançávamos, o desassossego original ia se transformando numa
franca desilusão. Elena (militante da esquerda chilena que acompanha
Littín) me confessou mais tarde que ela também, ainda que estivesse
estado no Chile várias vezes em épocas recentes, tinha padecido o mesmo
desconcerto.
Coragem, leitor de esquerda. Adelante! Leiamos Littín, só mais um pouquinho:
- Não era para menos. Santiago, ao contrário do
que contavam no exílio, aparecia como uma cidade radiante, com seus
veneráveis monumentos iluminados e muita ordem e limpeza nas ruas. Os
instrumentos de repressão eram menos visíveis do que em Paris ou Nova
York. A interminável Alameda Bernardo O'Higgins abria-se frente a
nossos olhos como uma corrente de luz, vinda lá da histórica Estação
Central, construída pelo mesmo Gustavo Eiffel que fez a torre de Paris.
Até as putinhas sonolentas na calçada oposta eram menos indigentes e
tristes do que em outros tempos. De repente, do mesmo lado em que eu
viajava, apareceu o Palácio de La Moneda, como um fantasma indesejado.
Na última vez que eu o tinha visto, era uma carcaça coberta de cinzas.
Agora, restaurado e outra vez em uso, parecia uma mansão de sonho ao
fundo de um jardim francês.
Fico por aqui. Se o leitor ainda alimenta
dúvidas, que visite o Chile, preferentemente após ter deambulado por
Havana. O homem só conhece comparando. Para finalizar, apenas mais uma
observação, não minha, mas de Littín, que talvez elucide a prosperidade
actual do seu país.
- Uma das primeiras medidas que ele (Allende)
tomou no Governo foi a nacionalização das minas. Uma das primeiras
medidas de Pinochet foi privatizá-las outra vez, como fez com todos os
cemitérios, os trens, os portos e até o recolhimento do lixo.
O que esclarece, a meu ver, o fascínio das ruas de Santiago.
[*] Este artigo foi publicado em Joinville, em A
Notícia, 27.11.88. E em Porto Alegre, no RS, 10.12.88. Os números de
mortes citados eram as estimativas de então. Hoje considera-se que o
total de mortes ao longo da ditadura de Pinochet foi em torno de três
mil.
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