quarta-feira, 6 de setembro de 2006

ENTRE A NOSTALGIA DAS ORIGENS E O VALOR DA LIBERDADE*

Caro Miguel: hoje, 2006, apesar de todas as tolices e asneiras (e olhe que são muitas, seja na economia, aumento do desemprego, reforço do peso do Estado na sociedade, monopolização do aparelho administrativo, instrumentalização da mídia estatal, fraude eleitoral, nepotismo nas ZDTIs, etc.) do Governo paicevista, não há mais "partido único" para derrubar. A tarefa, agora, é outra: consolidar o Estado de direito, reforçar a democracia, e assim por diante. É uma luta difícil, perante um adversário que só aceitou a democracia porque o muro de Berlim caiu e o império soviético soçobrou. Quer uma prova simples? Enquanto deputado, pergunte, no uso de um direito constitucional, aos responsáveis da política externa qual é a posição oficial de Cabo Verde sobre a crise humanitária na ilha estalinista de Fidel Castro. Pergunte, e depois falaremos
Acabo de ler um apontamento de Miguel Sousa acerca da VIII convenção do MpD. O texto é apaixonado, por vezes apaixonante, e transborda de alegria e confiança. Tentando reconstituir a história política, em jeito de "wissenschaft" (numa como que "leitura hermenêutica" do passado com vista a iluminar o futuro e os desafios vindouros), Miguel propõe, no clímax do seu arrazoado, um "partido federador", que "federa o pensamento político de esquerda à direita, passando pelo centro político, sendo também federador das tendências ideológicas e políticas". É uma ideia que me deixou algo perplexo. Por isso, resolvi alinhavar, sem demora, esta crítica, ainda que limitado por algumas circunstâncias, que me proíbem um pronunciamento mais alargado sobre o tema.
Encontro-me na minha aldeia natal, Ribeira do Ilhéu, clima ameno, agradável, mas sem acesso à Internet, longe dos meus livros e documentos, e sem poder acompanhar, sequer, o noticiário televisivo. A luz eléctrica é deficiente e a informação, bem precioso, praticamente não circula, mais uma prova de que a "boa governação", mil vezes garantida pelos acólitos do poder, ainda não atingiu os recantos do município dos Mosteiros, onde o presidente da câmara, entre vários outros desconchavos, diz que "apoia" os jovens com terrenos (municipais), e ninguém tenta saber que "jovens" são esses, e com que fundamento se presta tão simpático "apoio".
Recordemos, em contrapartida, a sindicância à câmara do Maio e o formidável rebuliço que a imprensa politicamente correcta armou à volta do caso. Qual quê? A hipocrisia é o que está a dar. E, além do mais, conta-se com a brandura comovente do sistema judicial. A teoria de Montesquieu foi substituída, nestas ilhas, por uma máxima infinitamente mais engenhosa: "Cadeia para os pobres; Governo ou América para os criminosos a soldo do partido". Anos atrás, dizia-se que o nosso país, por causa do turismo, ia ser, num futuro não muito longínquo, parecido com o arquipélago das Canárias. Era uma conjectura popular; optimista. O certo é que já atingimos, senão o esplendor de Las Palmas, ao menos a atmosfera sombria da Sicília. É a República da Pouca-Vergonha... My dog!
Não me move qualquer espírito de polémica, ainda por cima com um amigo e colega de partido. Miguel é um indivíduo empreendedor, atento, preocupado com os problemas do país. Aproveito para enaltecer o seu dinamismo, cujo símbolo mais visível é a recente criação de um "blog" para discutir alguns assuntos relevantes. Do Estado e da vida política e cultural, se bem percebi a sua intenção. O meu intuito é, se possível, esclarecer alguns pontos e abrir pistas para a reflexão. Faço-o com todo o meu sentido cívico. Não se pode agradar quando o momento exige clareza e seriedade de propósitos. Faço-o, sobretudo, com sentido de justiça, "este lume eterno que não tem ocaso, esta verdade que não se pode ter em dúvida", nas palavras impressivas de Sforza, dourando a sua "Filosofia del Diritto". Parece-me que há uma certa contradição no texto do meu prezado amigo. Que é isso de "partido federador da esquerda, direita e centro"? Nunca vi tal coisa, confesso.
Se os pensadores liberais, de cujos tópicos legitimadores o Miguel se serve ("democracia", "direitos fundamentais", "liberdade económica", "Constituição", etc.), vissem tal sugestão, algo bizantina, decerto ficariam assustados! O amigo acredita que há lugar, num "partido liberal", para um marxista convicto, que é, para usar uma convenção, um homem de "esquerda"? Eu acho que não, com o devido respeito, por si e pelo socialista totalitário. A mistura sugerida é uma espécie de "salada russa". É como tentar conciliar a visão cosmológica de Ptolomeu com a do moderno Copérnico. Por mais "dialéctica" que houver, não acredito nisso. Não se pode pôr, no mesmo partido, fulanos que pensam de forma marcadamente diferente. É uma amálgama sem futuro. São questões de princípio. Só por uma questão "táctica", circunstancial, é que os inimigos (irredutíveis) conseguem ficar juntos. Em 1990, o MpD era, sobretudo, uma "Frente" ampla para derrubar o "partido único" e a ditadura. Cumpriu o seu papel, governou durante uma década e fez, como você muito bem sublinhou, reformas importantíssimas. Numa palavra: modernizou este país. Seria fastidioso repetir, "hic et nunc", as inúmeras conquistas da democracia. Já gastei rios de tinta nisso. Por ora, basta recordar um facto significativo, do qual os cristãos-novos da "democracia revolucionária", de matriz soviética, fogem como Lúcifer da cruz: a partir da década de 90, deixou de haver pedidos de asilo político, por parte de cidadãos cabo-verdianos. Já não era, a partir de então, possível invocar a brutalidade do Estado policial como motivo de compaixão e de asilo político. Nem a Holanda nem os Estados Unidos aceitariam o requerimento.
Caro Miguel: hoje, 2006, apesar de todas as tolices e asneiras (e olhe que são muitas, seja na economia, aumento do desemprego, reforço do peso do Estado na sociedade, monopolização do aparelho administrativo, instrumentalização da mídia estatal, fraude eleitoral, nepotismo nas ZDTIs, etc.) do Governo paicevista, não há mais "partido único" para derrubar. A tarefa, agora, é outra: consolidar o Estado de direito, reforçar a democracia, e assim por diante. É uma luta difícil, perante um adversário que só aceitou a democracia porque o muro de Berlim caiu e o império soviético soçobrou. Quer uma prova simples? Enquanto deputado, pergunte, no uso de um direito constitucional, aos responsáveis da política externa qual é a posição oficial de Cabo Verde sobre a crise humanitária na ilha estalinista de Fidel Castro. Pergunte, e depois falaremos.
O nosso partido (MpD) deve ter uma identidade. O meu amigo bem o reconhece. Só assim haverá uma verdadeira e própria comunhão de ideias (e ideais políticos). Se não soubermos quem somos, como é que os outros saberão? A nossa afirmação política depende dessa clareza ideológica e estratégica. Aí reside, de facto, a nossa grande vantagem competitiva. É necessária uma concordância (sincera) ao nível do significante e do significado. Sem isso, tudo se evapora no altar do vazio e do palavrório inconsequente. O que faz forte um partido político? Os seus valores. Claro que somos um partido nacionalista. A nossa função é servir Cabo Verde, pôr toda a nossa energia e capacidade ao serviço da nação e dos cidadãos desta pátria da liberdade. Mas, acima de tudo, é preciso qualificar o nosso nacionalismo. Queremos, sim, um Cabo Verde livre, democrático, pluralista e solidário, lastreado na mais profunda sabedoria política, aquela que fez, de resto, A Riqueza das Nações, desde que essa expressão foi cunhada por Adam Smith. Pensamos, tal como o fez a Declaração da Independência norte-americana, em 1776, que o papel do Estado é defender os direitos naturais da pessoa humana. Não cabe ao Estado programar o nosso destino nem tutelar a nossa existência. A procura da felicidade é, desta forma, um direito individual, algo radicalmente subjectivo. Vale aqui o sapientíssimo "imperativo categórico" de Immanuel Kant: "Nunca trates o teu semelhante como meio, mas como um fim em si mesmo". É neste plano, de valor e liberdade, que o Estado recorta a sua legitimidade e o direito de usar a força. O mais é despotismo, ou totalitarismo, e justifica a desobediência civil.
A centralidade do pensamento liberal é, pois, o personalismo, os direitos fundamentais, a mentalidade civil, pacífica, ordeira. A liberdade como direito, claro, mas, sobretudo, como dever. A primazia, enfim, da liberdade individual e da justiça. Quem melhor o sintetizou foi Raymond Aron: "Nem rebelde, nem conformista, simplesmente cidadão livre e responsável". Não é preciso recorrer aos clássicos da filosofia política. Leia-se um simples dicionário. "Liberal: generoso; amigo da liberdade política e civil; próprio do homem livre; ter ideias avançadas sobre a vida social; que tolera ideias diferentes das suas; pessoa partidária da liberdade política e religiosa".
A cartilha ideológica que identifica o Liberalismo com a "avareza" é, apenas, uma vigarice inventada pelos marxistas e companhia. Não há nenhum pensador liberal que tenha defendido, algum dia, as sandices que a patota socialista vocifera, com o automatismo febril do animal de Pavlov, por esse mundo fora. Um exemplo singelo, para calar os cripto-mentirosos de pacotilha: diz-se, com modos de imparcialidade científica, que o liberal é aquele que defende "a ausência do Estado na economia", um "Estado fraco", e assim por diante. É pura idiotice. Uma espécie, aliás, de "auto-retrato", dessa seita maquiavélica que não suporta a volúpia da sociedade aberta e, por isso, a denigre rancorosamente, com as cores da "anarquia" e da "selvajaria". Quem defendeu o "fim do Estado" foi, pelo que sei, sua excelência o profeta Karl Marx, asneira monumental que a história desmentiu, sem misericórdia, nos países do "socialismo real". O socialismo, na sua fase final e idílica, é a "sociedade sem classes" e..."sem Estado", onde todo o conflito desaparece como que miraculosamente. O liberal, na verdade, sempre necessitou do Estado, enquanto salvaguarda institucional da sua liberdade e da tranquilidade pública. O poder faz falta. Mas tem de vergar-se à lei e aos ditames da ética civilizada.
A solidez, o acerto, da nossa filosofia não vagueia na amplidão das nuvens, ou numa qualquer Lilliput utópica. Tem, atrás de si, o conforto histórico da evidência empírica. Os países que adoptaram os princípios liberais progrediram a olhos vistos. Estados Unidos, Reino Unido, Noruega, Canadá, Nova Zelândia, etc., são democracias estáveis, tecnologicamente avançadas e com um altíssimo índice de desenvolvimento humano. A pobreza, nessas repúblicas abertas, foi vencida e o bem-estar generalizou-se. Os cidadãos são livres e exercem a sua iniciativa sob o governo das leis. Socialismo é sinónimo de "justiça social"? Não me façam rir! Onde? A fome dizimou a União Soviética, a China de Mao e todos os países "socialistas", incluindo os africanos, para além de uma brutal repressão. Cuba, sob o estelionato senil de Fidel Castro, é um triste exemplo redivivo da falência de um sistema político iníquo, antihumano e arbitrário.
O MpD deve escolher, sem hesitar, o seu campo. É certo que o partido deve abrir-se à sociedade, conquistar mais pessoas, ganhar a juventude. Está ao nosso alcance, porque temos valor. Mas isso não tem a ver com os princípios (fundamentais). Os princípios são esses. Os que vierem, são bem-vindos, mas devem saber que a nossa base ideológica é democrática, nos termos da tradição da liberdade. A dignidade humana, para nós, é tudo. Não é negociável. O resto é cumprir as regras da tolerância, quando não da simples cortesia, organizar-se eficazmente, motivar os militantes, influenciar a sociedade e fazer oposição de cabeça erguida. A batalha é cultural, e ganha-se se o partido estiver presente, motivado e confiante. Há muita gente que saiu, não por questões de princípio, mas por razões pessoais, etc. São pessoas que acreditam na Liberdade e na Democracia, e querem dar o seu contributo. Precisamos de todos os democratas sinceros!
O resto não é connosco. É ter fé em Deus, e pedir a sua protecção. As primeiras constituições modernas começavam sempre pela súplica ao Altíssimo. Os sistemas políticos (e económicos) jamais serão perfeitos, e precisam, invariavelmente, da compaixão e da caridade. Essa humildade está, também, no fundo precioso da melhor tradição liberal, a qual sempre soube que o homem é um ser frágil, incompleto, que progride tacteando e, por isso, merece a liberdade, para procurar o bem e a verdade. Toda a autoridade terrena é falível. E o poder corrompe!...
Por vezes, um beijo, um sorriso, é o suficiente, qual milagre divino, para justificar a liberdade. Explicava isto à minha querida cunhada, contando-lhe um segredo pessoalíssimo. Um preso político cubano, que sofreu, humilhado, durante duas décadas nas masmorras do ditador comunista, deu um testemunho semelhante, que me impressionou profundamente. "O regime - dizia ele - tirou-me tudo, mas não permiti que me roubasse o sorriso". Para ele, foi uma vitória sobre a tirania.
Para I.R.: nos teus braços, moçinha, a ideologia perde todo o encanto. Sim, submeto-me ao teu doce despotismo, generosamente, com o fanatismo dos totalitários...

Seja o primeiro a comentar

Enviar um comentário


About Me

Jurista e Docente Universitário

O Espírito das Leis ©

TOPO