ENTRE A NOSTALGIA DAS ORIGENS E O VALOR DA LIBERDADE*
Caro Miguel: hoje, 2006, apesar de todas as
tolices e asneiras (e olhe que são muitas, seja na economia, aumento do
desemprego, reforço do peso do Estado na sociedade, monopolização do
aparelho administrativo, instrumentalização da mídia estatal, fraude
eleitoral, nepotismo nas ZDTIs, etc.) do Governo paicevista, não há
mais "partido único" para derrubar. A tarefa, agora, é outra:
consolidar o Estado de direito, reforçar a democracia, e assim por
diante. É uma luta difícil, perante um adversário que só aceitou a
democracia porque o muro de Berlim caiu e o império soviético soçobrou.
Quer uma prova simples? Enquanto deputado, pergunte, no uso de um
direito constitucional, aos responsáveis da política externa qual é a
posição oficial de Cabo Verde sobre a crise humanitária na ilha
estalinista de Fidel Castro. Pergunte, e depois falaremos
Acabo de ler um apontamento de Miguel Sousa
acerca da VIII convenção do MpD. O texto é apaixonado, por vezes
apaixonante, e transborda de alegria e confiança. Tentando reconstituir
a história política, em jeito de "wissenschaft" (numa como que "leitura
hermenêutica" do passado com vista a iluminar o futuro e os desafios
vindouros), Miguel propõe, no clímax do seu arrazoado, um "partido
federador", que "federa o pensamento político de esquerda à direita,
passando pelo centro político, sendo também federador das tendências
ideológicas e políticas". É uma ideia que me deixou algo perplexo. Por
isso, resolvi alinhavar, sem demora, esta crítica, ainda que limitado
por algumas circunstâncias, que me proíbem um pronunciamento mais
alargado sobre o tema.
Encontro-me na minha aldeia natal, Ribeira do
Ilhéu, clima ameno, agradável, mas sem acesso à Internet, longe dos
meus livros e documentos, e sem poder acompanhar, sequer, o noticiário
televisivo. A luz eléctrica é deficiente e a informação, bem precioso,
praticamente não circula, mais uma prova de que a "boa governação", mil
vezes garantida pelos acólitos do poder, ainda não atingiu os recantos
do município dos Mosteiros, onde o presidente da câmara, entre vários
outros desconchavos, diz que "apoia" os jovens com terrenos
(municipais), e ninguém tenta saber que "jovens" são esses, e com que
fundamento se presta tão simpático "apoio".
Recordemos, em contrapartida, a sindicância à
câmara do Maio e o formidável rebuliço que a imprensa politicamente
correcta armou à volta do caso. Qual quê? A hipocrisia é o que está a
dar. E, além do mais, conta-se com a brandura comovente do sistema
judicial. A teoria de Montesquieu foi substituída, nestas ilhas, por
uma máxima infinitamente mais engenhosa: "Cadeia para os pobres;
Governo ou América para os criminosos a soldo do partido". Anos atrás,
dizia-se que o nosso país, por causa do turismo, ia ser, num futuro não
muito longínquo, parecido com o arquipélago das Canárias. Era uma
conjectura popular; optimista. O certo é que já atingimos, senão o
esplendor de Las Palmas, ao menos a atmosfera sombria da Sicília. É a
República da Pouca-Vergonha... My dog!
Não me move qualquer espírito de polémica, ainda
por cima com um amigo e colega de partido. Miguel é um indivíduo
empreendedor, atento, preocupado com os problemas do país. Aproveito
para enaltecer o seu dinamismo, cujo símbolo mais visível é a recente
criação de um "blog" para discutir alguns assuntos relevantes. Do
Estado e da vida política e cultural, se bem percebi a sua intenção. O
meu intuito é, se possível, esclarecer alguns pontos e abrir pistas
para a reflexão. Faço-o com todo o meu sentido cívico. Não se pode
agradar quando o momento exige clareza e seriedade de propósitos.
Faço-o, sobretudo, com sentido de justiça, "este lume eterno que não
tem ocaso, esta verdade que não se pode ter em dúvida", nas palavras
impressivas de Sforza, dourando a sua "Filosofia del Diritto".
Parece-me que há uma certa contradição no texto do meu prezado amigo.
Que é isso de "partido federador da esquerda, direita e centro"? Nunca
vi tal coisa, confesso.
Se os pensadores liberais, de cujos tópicos
legitimadores o Miguel se serve ("democracia", "direitos fundamentais",
"liberdade económica", "Constituição", etc.), vissem tal sugestão, algo
bizantina, decerto ficariam assustados! O amigo acredita que há lugar,
num "partido liberal", para um marxista convicto, que é, para usar uma
convenção, um homem de "esquerda"? Eu acho que não, com o devido
respeito, por si e pelo socialista totalitário. A mistura sugerida é
uma espécie de "salada russa". É como tentar conciliar a visão
cosmológica de Ptolomeu com a do moderno Copérnico. Por mais
"dialéctica" que houver, não acredito nisso. Não se pode pôr, no mesmo
partido, fulanos que pensam de forma marcadamente diferente. É uma
amálgama sem futuro. São questões de princípio. Só por uma questão
"táctica", circunstancial, é que os inimigos (irredutíveis) conseguem
ficar juntos. Em 1990, o MpD era, sobretudo, uma "Frente" ampla para
derrubar o "partido único" e a ditadura. Cumpriu o seu papel, governou
durante uma década e fez, como você muito bem sublinhou, reformas
importantíssimas. Numa palavra: modernizou este país. Seria fastidioso
repetir, "hic et nunc", as inúmeras conquistas da democracia. Já gastei
rios de tinta nisso. Por ora, basta recordar um facto significativo, do
qual os cristãos-novos da "democracia revolucionária", de matriz
soviética, fogem como Lúcifer da cruz: a partir da década de 90, deixou
de haver pedidos de asilo político, por parte de cidadãos
cabo-verdianos. Já não era, a partir de então, possível invocar a
brutalidade do Estado policial como motivo de compaixão e de asilo
político. Nem a Holanda nem os Estados Unidos aceitariam o requerimento.
Caro Miguel: hoje, 2006, apesar de todas as
tolices e asneiras (e olhe que são muitas, seja na economia, aumento do
desemprego, reforço do peso do Estado na sociedade, monopolização do
aparelho administrativo, instrumentalização da mídia estatal, fraude
eleitoral, nepotismo nas ZDTIs, etc.) do Governo paicevista, não há
mais "partido único" para derrubar. A tarefa, agora, é outra:
consolidar o Estado de direito, reforçar a democracia, e assim por
diante. É uma luta difícil, perante um adversário que só aceitou a
democracia porque o muro de Berlim caiu e o império soviético soçobrou.
Quer uma prova simples? Enquanto deputado, pergunte, no uso de um
direito constitucional, aos responsáveis da política externa qual é a
posição oficial de Cabo Verde sobre a crise humanitária na ilha
estalinista de Fidel Castro. Pergunte, e depois falaremos.
O nosso partido (MpD) deve ter uma identidade. O
meu amigo bem o reconhece. Só assim haverá uma verdadeira e própria
comunhão de ideias (e ideais políticos). Se não soubermos quem somos,
como é que os outros saberão? A nossa afirmação política depende dessa
clareza ideológica e estratégica. Aí reside, de facto, a nossa grande
vantagem competitiva. É necessária uma concordância (sincera) ao nível
do significante e do significado. Sem isso, tudo se evapora no altar do
vazio e do palavrório inconsequente. O que faz forte um partido
político? Os seus valores. Claro que somos um partido nacionalista. A
nossa função é servir Cabo Verde, pôr toda a nossa energia e capacidade
ao serviço da nação e dos cidadãos desta pátria da liberdade. Mas,
acima de tudo, é preciso qualificar o nosso nacionalismo. Queremos,
sim, um Cabo Verde livre, democrático, pluralista e solidário,
lastreado na mais profunda sabedoria política, aquela que fez, de
resto, A Riqueza das Nações, desde que essa expressão foi cunhada por
Adam Smith. Pensamos, tal como o fez a Declaração da Independência
norte-americana, em 1776, que o papel do Estado é defender os direitos
naturais da pessoa humana. Não cabe ao Estado programar o nosso destino
nem tutelar a nossa existência. A procura da felicidade é, desta forma,
um direito individual, algo radicalmente subjectivo. Vale aqui o
sapientíssimo "imperativo categórico" de Immanuel Kant: "Nunca trates o
teu semelhante como meio, mas como um fim em si mesmo". É neste plano,
de valor e liberdade, que o Estado recorta a sua legitimidade e o
direito de usar a força. O mais é despotismo, ou totalitarismo, e
justifica a desobediência civil.
A centralidade do pensamento liberal é, pois, o
personalismo, os direitos fundamentais, a mentalidade civil, pacífica,
ordeira. A liberdade como direito, claro, mas, sobretudo, como dever. A
primazia, enfim, da liberdade individual e da justiça. Quem melhor o
sintetizou foi Raymond Aron: "Nem rebelde, nem conformista,
simplesmente cidadão livre e responsável". Não é preciso recorrer aos
clássicos da filosofia política. Leia-se um simples dicionário.
"Liberal: generoso; amigo da liberdade política e civil; próprio do
homem livre; ter ideias avançadas sobre a vida social; que tolera
ideias diferentes das suas; pessoa partidária da liberdade política e
religiosa".
A cartilha ideológica que identifica o
Liberalismo com a "avareza" é, apenas, uma vigarice inventada pelos
marxistas e companhia. Não há nenhum pensador liberal que tenha
defendido, algum dia, as sandices que a patota socialista vocifera, com
o automatismo febril do animal de Pavlov, por esse mundo fora. Um
exemplo singelo, para calar os cripto-mentirosos de pacotilha: diz-se,
com modos de imparcialidade científica, que o liberal é aquele que
defende "a ausência do Estado na economia", um "Estado fraco", e assim
por diante. É pura idiotice. Uma espécie, aliás, de "auto-retrato",
dessa seita maquiavélica que não suporta a volúpia da sociedade aberta
e, por isso, a denigre rancorosamente, com as cores da "anarquia" e da
"selvajaria". Quem defendeu o "fim do Estado" foi, pelo que sei, sua
excelência o profeta Karl Marx, asneira monumental que a história
desmentiu, sem misericórdia, nos países do "socialismo real". O
socialismo, na sua fase final e idílica, é a "sociedade sem classes"
e..."sem Estado", onde todo o conflito desaparece como que
miraculosamente. O liberal, na verdade, sempre necessitou do Estado,
enquanto salvaguarda institucional da sua liberdade e da tranquilidade
pública. O poder faz falta. Mas tem de vergar-se à lei e aos ditames da
ética civilizada.
A solidez, o acerto, da nossa filosofia não
vagueia na amplidão das nuvens, ou numa qualquer Lilliput utópica. Tem,
atrás de si, o conforto histórico da evidência empírica. Os países que
adoptaram os princípios liberais progrediram a olhos vistos. Estados
Unidos, Reino Unido, Noruega, Canadá, Nova Zelândia, etc., são
democracias estáveis, tecnologicamente avançadas e com um altíssimo
índice de desenvolvimento humano. A pobreza, nessas repúblicas abertas,
foi vencida e o bem-estar generalizou-se. Os cidadãos são livres e
exercem a sua iniciativa sob o governo das leis. Socialismo é sinónimo
de "justiça social"? Não me façam rir! Onde? A fome dizimou a União
Soviética, a China de Mao e todos os países "socialistas", incluindo os
africanos, para além de uma brutal repressão. Cuba, sob o estelionato
senil de Fidel Castro, é um triste exemplo redivivo da falência de um
sistema político iníquo, antihumano e arbitrário.
O MpD deve escolher, sem hesitar, o seu campo. É
certo que o partido deve abrir-se à sociedade, conquistar mais pessoas,
ganhar a juventude. Está ao nosso alcance, porque temos valor. Mas isso
não tem a ver com os princípios (fundamentais). Os princípios são
esses. Os que vierem, são bem-vindos, mas devem saber que a nossa base
ideológica é democrática, nos termos da tradição da liberdade. A
dignidade humana, para nós, é tudo. Não é negociável. O resto é cumprir
as regras da tolerância, quando não da simples cortesia, organizar-se
eficazmente, motivar os militantes, influenciar a sociedade e fazer
oposição de cabeça erguida. A batalha é cultural, e ganha-se se o
partido estiver presente, motivado e confiante. Há muita gente que
saiu, não por questões de princípio, mas por razões pessoais, etc. São
pessoas que acreditam na Liberdade e na Democracia, e querem dar o seu
contributo. Precisamos de todos os democratas sinceros!
O resto não é connosco. É ter fé em Deus, e
pedir a sua protecção. As primeiras constituições modernas começavam
sempre pela súplica ao Altíssimo. Os sistemas políticos (e económicos)
jamais serão perfeitos, e precisam, invariavelmente, da compaixão e da
caridade. Essa humildade está, também, no fundo precioso da melhor
tradição liberal, a qual sempre soube que o homem é um ser frágil,
incompleto, que progride tacteando e, por isso, merece a liberdade,
para procurar o bem e a verdade. Toda a autoridade terrena é falível. E
o poder corrompe!...
Por vezes, um beijo, um sorriso, é o suficiente,
qual milagre divino, para justificar a liberdade. Explicava isto à
minha querida cunhada, contando-lhe um segredo pessoalíssimo. Um preso
político cubano, que sofreu, humilhado, durante duas décadas nas
masmorras do ditador comunista, deu um testemunho semelhante, que me
impressionou profundamente. "O regime - dizia ele - tirou-me tudo, mas
não permiti que me roubasse o sorriso". Para ele, foi uma vitória sobre
a tirania.
Para I.R.: nos teus braços, moçinha, a ideologia
perde todo o encanto. Sim, submeto-me ao teu doce despotismo,
generosamente, com o fanatismo dos totalitários...
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