quinta-feira, 10 de agosto de 2006

FIDEL: UM DITADOR MODERNO

A forma simpática, comovente, como a imprensa cabo-verdiana referiu-se à “passagem” do poder em Cuba (de Fidel para Raul, como nas velhas monarquias) é mais um exemplo eloquente do estado da nossa democracia e da mentalidade dominante entre nós. Fidel foi aclamado, apresentado como um “velho lutador”, um líder “carismático”, que fez frente, heroicamente, ao “bloqueio americano”. Um “idealista”, em suma. Jorge Carlos Fonseca dizia-me, a propósito, numa roda de amigos, que a nossa gente não está habituada a exercer a faculdade crítica. E tem razão

Alexis de Tocqueville, no século XIX, foi um dos primeiros (talvez o maior) teóricos da democracia moderna.
Por mais que isto desagrade, por mais ressentimentos que isto traga à corja dos pseudo-educados, fui eu, este vosso criado tomado por inquietações metafísicas e filosóficas, quem, de forma sistemática, introduziu, neste país, a discussão do pensamento desse notável pensador francês. Fi-lo, não por vaidade, mas porque pensei, e continuo a pensar, que a defesa da democracia, enquanto ideal de convivência social, carece de bases sólidas e de uma reflexão consistente. A liberdade só ganha raízes quando for devidamente compreendida. Percebi, muito claramente, que pensadores como Tocqueville, Adam Smith, Montesquieu, Hamilton, Jean-François Revel, Michael Novak, e tantos outros que tenho discutido e comentado, são essenciais na hora presente. O desenvolvimento de uma nação não é obra do acaso. Não é um acto milagroso. O desenvolvimento é o fruto maduro de certas ideias. De ideias certas. O caminho do amadurecimento cívico e espiritual, o caminho da cidadania, está vinculado, pois, à tradição dos grandes livros e da liberdade ordeira. A liberdade não surgiu do nada. Ela tem um percurso histórico e intelectual; uma génese e um “telos”. E esse percurso tem de ser compreendido. Ralf Dahrendorf, num ensaio seminal, demonstrou que a queda da República de Weimar, dotada de um razoável aparato jurídico-institucional, deveu-se, sobretudo, à falta de cultura democrática.
Da mesma forma, é preciso estudar os livros de Humberto Cardoso, Jorge Carlos Fonseca, e outros mais, para se perceber a natureza do sistema de Partido Único em Cabo Verde. Mas, infelizmente, muitos não compreendem a urgência do problema. Ainda há dias, uma senhora respeitável, que já foi dirigente de um órgão de poder neste país, dizia-me, com ar triunfante, que “os jovens não querem saber quem introduziu a economia de mercado em Cabo Verde”. Que isso “não interessa”. Que os jovens só querem “emprego” e “oportunidades”. Aparentemente, a tese é sensata. Todos querem, sem dúvida, a “prosperidade”. Mas a teoria da digníssima é falaciosa. Esquece que o “bem-estar” é fruto de um trabalho social exigente, assente numa base ética, histórica, política e filosófica que nenhuma estupidez tecnocrática consegue ocultar. Tocqueville foi um dos primeiros a denunciar esse “abaixamento do olhar”. A tecnocracia defende a “amnésia” histórica como regra de acção. É uma tese simplista, antipolítica, própria de “sibaritas sem visão”, na expressão de um Leo Strauss. A tecnocracia recusa o saber. Recusa a cultura e a crítica. Pois não há qualquer crítica sem a prévia compreensão dos processos. A tecnocracia, ainda que empertigada e pseudocientífica, é a exaltação da leviandade, o elogio da fantasia. Norberto Bobbio, em 1981, pôs o problema com a mais fina sapiência. A política existe, sim, para “transformar o mundo”, “para melhor e não para pior”. Mas, para isso, é preciso “estudar, relacionar os problemas do presente com os do passado, definir os conceitos fundamentais, para evitar as superficialidades e as confusões, dar-se conta de que a história, com seus problemas não resolvidos, não recomeça a cada geração”. Resta saber se os nossos inocentes úteis perceberam a lição do pensador italiano...
A forma simpática, comovente, como a imprensa cabo-verdiana referiu-se à “passagem” do poder em Cuba (de Fidel para Raul, como nas velhas monarquias) é mais um exemplo eloquente do estado da nossa democracia e da mentalidade dominante entre nós. Fidel foi aclamado, apresentado como um “velho lutador”, um líder “carismático”, que fez frente, heroicamente, ao “bloqueio americano”. Um “idealista”, em suma. Jorge Carlos Fonseca dizia-me, a propósito, numa roda de amigos, que a nossa gente não está habituada a exercer a faculdade crítica. E tem razão. Como afirmar que o Napoleão das Caraíbas é um “idealista” se, desde 1959, exerce um poder autocrático feroz, com toda a sorte de abusos e atropelos, e sem o consentimento popular? Um “idealista”, vejam só, que se agarra caninamente ao poder há quase 50 anos! Simplesmente revelador. Só faltou canonizar o velho tirano de Havana, invocando as credenciais “científicas” do Manifesto Comunista. Fidel Castro é apenas um déspota de caserna, com ideias caquéticas que falharam em todo o planeta, da União Soviética ao Camboja. O seu legado é um país exangue, melancólico, com uma economia miserável e sem futuro. Um país altamente endividado, sobretudo quando deixou de receber a ajuda soviética. Lá vai aguentando com algum petróleo que chega da Venezuela e com as receitas do turismo, sector alimentado pelos “capitalistas” que procuram o ambiente sensual da ilha “socialista” perdida no tempo. O regime de Fidel é um totalitarismo que vigia rigorosamente a Internet, fuzila os dissidentes e proíbe o pluralismo político. Exprimir ideias é crime. Pensar de forma independente é crime. Em 2003, tudo isso ficou evidente, quando o regime condenou, a duras penas de prisão, dezenas e dezenas de intelectuais e contestatários, sob o olhar atónito da comunidade internacional. (Sobre a forte investida contra os jornalistas, pode consultar-se o seguinte “site”: www.rsf.org). Os “tribunais” cubanos dependem do Conselho de Estado e este, por sua vez, do “comandante supremo da revolução”. Os “advogados”, escolhidos pelo poder, são funcionários do Estado, sem qualquer relevância no processo. O Procurador da República recebe ordens directas do Conselho de Estado. A Constituição cubana não admite o exercício das liberdades fundamentais, uma vez que estão subordinadas à ”construção do socialismo” e aos objectivos da nomenklatura.
José Manuel Fernandes, director do “Público, escreveu um prefácio copioso ao “Livro Negro de Cuba” (ed. pela Amnistia Internacional, Comissão Cubana dos Direitos do Homem e da Reconciliação Nacional, Human Rights Watch, Pax Christi e Repórteres sem Fronteiras – Alétheia Editores, Lisboa, 2005) que é de leitura obrigatória, assim como o referido livro. Eis uma passagem: “...o fracasso económico de Cuba é tão gritante que mesmo as mentiras do ‘igualitarismo’ e do ‘bloqueio’ não conseguem disfarçá-lo. Basta dizer que em 1959, ano da revolução, o rendimento anual médio per capita era de 1200 dólares, o segundo mais elevado da América Latina; em 2004, foi de 70 dólares. Havia então 15 telefones por cada 100 habitantes; agora há 3,5. O consumo calórico de alimentos era de 2800 calorias por habitante e por dia; hoje, as senhas de racionamento permitem uma dieta de apenas 1800 calorias, isto quando todos os produtos que incluem estão disponíveis, o que nem sempre acontece. Por ano, a média de consumo de carne por habitante era, há 45 anos, de 35 quilos, agora é de 5,5 quilos”. São estas as famosas “conquistas” do socialismo cubano! É por causa desses notáveis “progressos” que milhares e milhares de cubanos fogem, sempre que podem, para Miami ou Florida, a escassos minutos da ilha estalinista.
Perante esses dados cruéis, os sequazes de Fidel replicam: sim, mas há “grandes conquistas” nas áreas da saúde e educação. É o refrão de sempre, na tentativa de justificar a delirante utopia. Ouçamos, novamente, José Manuel Fernandes. A sua voz é elucidativa: “Só que o argumento esquece que Cuba já tinha o melhor sistema de saúde da América Latina antes da revolução. No caso concreto do sistema de saúde, em 1958 a taxa de mortalidade infantil já era a mais baixa de toda a América Latina e a taxa de mortalidade geral era melhor do que a dos Estados Unidos e a terceira mais baixa do mundo. Na verdade, nessa época já havia um médico por cada 950 habitantes, número que tantos anos de socialismo conseguiu melhorar para um médico por cada 750 habitantes (em Portugal, no mesmo intervalo de tempo, o número de médicos por 1000 habitantes foi multiplicado por quatro). Sendo que, em 1959, não havia falhas no abastecimento de medicamentos, mesmo os mais básicos, enquanto, hoje, o alho serve para combater a hipertensão, o mamão para os problemas digestivos e os anti-inflamatórios só se encontram no mercado negro. Isto para além de os médicos se debaterem com carências terríveis (é um inferno fazer uma simples radiografia...) e trabalharem em edifícios literalmente a desfazerem-se, onde as condições de higiene são quase inexistentes. Mais: para tirar partido de tantos médicos, é fundamental que os doentes os possam consultar, algo muito difícil numa ilha onde o sistema de transportes colapsou (havia 1 autocarro para cada 300 habitantes em 1959, hoje há apenas 1 para 25.000 habitantes) e muitos doentes dependem de boleias avulsas e aleatórias para chegarem às consultas – eu próprio levei uma mãe e uma filha a um hospital onde a criança iria ser operada. Por outro lado, mesmo o chamado ‘milagre da educação’ não impede que, medida pelos padrões da UNESCO, os seus níveis em Cuba fiquem a perder, só na América Latina, para o Chile, a Argentina, o Uruguai e a Costa Rica”.
Já quanto aos países mais desenvolvidos, onde vigora o Estado de direito e a economia aberta, qualquer tentativa de comparação com Cuba é simplesmente absurda. Não se pode comparar, como diria Revel, um país subdesenvolvido (como a “isla” de Fidel Castro, onde a posse não autorizada de um aparelho de fax ou fotocopiadora dá cadeia) com outro desenvolvido e próspero. Estados Unidos, os países da União Europeia, Noruega, Suíca, etc., têm índices escandalosamente superiores na educação (incluindo o investimento na investigação científica, inovação tecnológica, etc.) e não precisaram, para isso, de instaurar uma ditadura repressiva, nem de amordaçar os respectivos povos. A “intelligentsia” bem-pensante ainda não percebeu, apesar dos sucessivos fracassos, que o progresso não implica a abolição das liberdades democráticas. O grande drama do “socialismo” marxista-leninista, e das suas várias ramificações intelectuais, reside precisamente neste ponto.
Aqui chegados, os leitores mais atentos dir-me-ão: óptimo, então qual é a razão do título deste seu artigo? Onde está a “modernidade” de Fidel Castro? Explico: o demagogo e ditador-mor cubano é moderno porque situa-se na linhagem do Despotismo Esclarecido de cariz modernizante, corrente inaugurada pelos jacobinos da Revolução Francesa. Robespierre é o seu antecessor natural. O Conselho de Estado cubano é uma espécie de “Comité de Salvação Pública”, vigente nos finais do século XVIII. O partido de Fidel exerce um poder absoluto, nos antípodas da tradição liberal, em nome de um “ideal libertador”, moderno. Trata-se de um projecto Iluminista. O seu modelo teórico é o “Contrato Social”, de Jean-Jacques Rousseau. O partido comunista encarna a célebre “vontade geral” e exerce uma ditadura cujo fim último é “libertar” a humanidade de todas as misérias e servidões, eliminando os conflitos, numa igualdade “socialista” perfeita e universal. Não por acaso, Lenine era um ardente admirador de Robespierre e dos seus métodos (terror, julgamentos revolucionários, anticlericalismo, etc.). O comunismo totalitário é moderno quanto aos fins. Mas, como se sabe, produziu péssimos resultados. É uma crença errada porque usa meios reprováveis e sacrifica a liberdade. Coloca os valores no final da acção, no “homem futuro” (esquecendo “o concreto e o presente”, duas dimensões humanas essenciais, para Albert Camus). A sua prática é, por isso, bárbara, formidavelmente obscurantista. É o regime político mais assassino e arbitrário de toda a história humana.
Com a permissão dos ilustres tecnocratas, tomo a liberdade, ao abrigo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de vos sugerir a leitura de mais um livro: “Sobre a Revolução” (Relógio d’Água, Lisboa, 2001). A autora é Hannah Arendt. Porque é preciso compreender. Distinguir. Para não cair nas armadilhas da vulgata. Com Arendt, o leitor compreenderá, então, que houve duas vias distintas para a modernidade. Uma representada pelo Iluminismo francês e outra, mais moderada, pelo Iluminismo anglo-americano, alicerçado, este último, no governo constitucional limitado, na liberdade individual e no pluralismo político. Deus queira que o nobre povo cubano descubra esta última tradição política (dos direitos do Homem e da democracia), como nós fizemos, aliás, em Cabo Verde, quando se aboliu a perversa tirania do Partido Único. Isto, aqui na Terra, nunca será perfeito. Mas devemos, e podemos, lutar por Um Mundo Melhor.

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Jurista e Docente Universitário

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