FIDEL: UM DITADOR MODERNO
A forma simpática, comovente, como a imprensa
cabo-verdiana referiu-se à “passagem” do poder em Cuba (de Fidel para
Raul, como nas velhas monarquias) é mais um exemplo eloquente do estado
da nossa democracia e da mentalidade dominante entre nós. Fidel foi
aclamado, apresentado como um “velho lutador”, um líder “carismático”,
que fez frente, heroicamente, ao “bloqueio americano”. Um “idealista”,
em suma. Jorge Carlos Fonseca dizia-me, a propósito, numa roda de
amigos, que a nossa gente não está habituada a exercer a faculdade
crítica. E tem razão
Alexis de Tocqueville, no século XIX, foi um dos primeiros (talvez o maior) teóricos da democracia moderna.
Por mais que isto desagrade, por mais
ressentimentos que isto traga à corja dos pseudo-educados, fui eu, este
vosso criado tomado por inquietações metafísicas e filosóficas, quem,
de forma sistemática, introduziu, neste país, a discussão do pensamento
desse notável pensador francês. Fi-lo, não por vaidade, mas porque
pensei, e continuo a pensar, que a defesa da democracia, enquanto ideal
de convivência social, carece de bases sólidas e de uma reflexão
consistente. A liberdade só ganha raízes quando for devidamente
compreendida. Percebi, muito claramente, que pensadores como
Tocqueville, Adam Smith, Montesquieu, Hamilton, Jean-François Revel,
Michael Novak, e tantos outros que tenho discutido e comentado, são
essenciais na hora presente. O desenvolvimento de uma nação não é obra
do acaso. Não é um acto milagroso. O desenvolvimento é o fruto maduro
de certas ideias. De ideias certas. O caminho do amadurecimento cívico
e espiritual, o caminho da cidadania, está vinculado, pois, à tradição
dos grandes livros e da liberdade ordeira. A liberdade não surgiu do
nada. Ela tem um percurso histórico e intelectual; uma génese e um
“telos”. E esse percurso tem de ser compreendido. Ralf Dahrendorf, num
ensaio seminal, demonstrou que a queda da República de Weimar, dotada
de um razoável aparato jurídico-institucional, deveu-se, sobretudo, à
falta de cultura democrática.
Da mesma forma, é preciso estudar os livros de
Humberto Cardoso, Jorge Carlos Fonseca, e outros mais, para se perceber
a natureza do sistema de Partido Único em Cabo Verde. Mas,
infelizmente, muitos não compreendem a urgência do problema. Ainda há
dias, uma senhora respeitável, que já foi dirigente de um órgão de
poder neste país, dizia-me, com ar triunfante, que “os jovens não
querem saber quem introduziu a economia de mercado em Cabo Verde”. Que
isso “não interessa”. Que os jovens só querem “emprego” e
“oportunidades”. Aparentemente, a tese é sensata. Todos querem, sem
dúvida, a “prosperidade”. Mas a teoria da digníssima é falaciosa.
Esquece que o “bem-estar” é fruto de um trabalho social exigente,
assente numa base ética, histórica, política e filosófica que nenhuma
estupidez tecnocrática consegue ocultar. Tocqueville foi um dos
primeiros a denunciar esse “abaixamento do olhar”. A tecnocracia
defende a “amnésia” histórica como regra de acção. É uma tese
simplista, antipolítica, própria de “sibaritas sem visão”, na expressão
de um Leo Strauss. A tecnocracia recusa o saber. Recusa a cultura e a
crítica. Pois não há qualquer crítica sem a prévia compreensão dos
processos. A tecnocracia, ainda que empertigada e pseudocientífica, é a
exaltação da leviandade, o elogio da fantasia. Norberto Bobbio, em
1981, pôs o problema com a mais fina sapiência. A política existe, sim,
para “transformar o mundo”, “para melhor e não para pior”. Mas, para
isso, é preciso “estudar, relacionar os problemas do presente com os do
passado, definir os conceitos fundamentais, para evitar as
superficialidades e as confusões, dar-se conta de que a história, com
seus problemas não resolvidos, não recomeça a cada geração”. Resta
saber se os nossos inocentes úteis perceberam a lição do pensador
italiano...
A forma simpática, comovente, como a imprensa
cabo-verdiana referiu-se à “passagem” do poder em Cuba (de Fidel para
Raul, como nas velhas monarquias) é mais um exemplo eloquente do estado
da nossa democracia e da mentalidade dominante entre nós. Fidel foi
aclamado, apresentado como um “velho lutador”, um líder “carismático”,
que fez frente, heroicamente, ao “bloqueio americano”. Um “idealista”,
em suma. Jorge Carlos Fonseca dizia-me, a propósito, numa roda de
amigos, que a nossa gente não está habituada a exercer a faculdade
crítica. E tem razão. Como afirmar que o Napoleão das Caraíbas é um
“idealista” se, desde 1959, exerce um poder autocrático feroz, com toda
a sorte de abusos e atropelos, e sem o consentimento popular? Um
“idealista”, vejam só, que se agarra caninamente ao poder há quase 50
anos! Simplesmente revelador. Só faltou canonizar o velho tirano de
Havana, invocando as credenciais “científicas” do Manifesto Comunista.
Fidel Castro é apenas um déspota de caserna, com ideias caquéticas que
falharam em todo o planeta, da União Soviética ao Camboja. O seu legado
é um país exangue, melancólico, com uma economia miserável e sem
futuro. Um país altamente endividado, sobretudo quando deixou de
receber a ajuda soviética. Lá vai aguentando com algum petróleo que
chega da Venezuela e com as receitas do turismo, sector alimentado
pelos “capitalistas” que procuram o ambiente sensual da ilha
“socialista” perdida no tempo. O regime de Fidel é um totalitarismo que
vigia rigorosamente a Internet, fuzila os dissidentes e proíbe o
pluralismo político. Exprimir ideias é crime. Pensar de forma
independente é crime. Em 2003, tudo isso ficou evidente, quando o
regime condenou, a duras penas de prisão, dezenas e dezenas de
intelectuais e contestatários, sob o olhar atónito da comunidade
internacional. (Sobre a forte investida contra os jornalistas, pode
consultar-se o seguinte “site”: www.rsf.org).
Os “tribunais” cubanos dependem do Conselho de Estado e este, por sua
vez, do “comandante supremo da revolução”. Os “advogados”, escolhidos
pelo poder, são funcionários do Estado, sem qualquer relevância no
processo. O Procurador da República recebe ordens directas do Conselho
de Estado. A Constituição cubana não admite o exercício das liberdades
fundamentais, uma vez que estão subordinadas à ”construção do
socialismo” e aos objectivos da nomenklatura.
José Manuel Fernandes, director do “Público,
escreveu um prefácio copioso ao “Livro Negro de Cuba” (ed. pela
Amnistia Internacional, Comissão Cubana dos Direitos do Homem e da
Reconciliação Nacional, Human Rights Watch, Pax Christi e Repórteres
sem Fronteiras – Alétheia Editores, Lisboa, 2005) que é de leitura
obrigatória, assim como o referido livro. Eis uma passagem: “...o
fracasso económico de Cuba é tão gritante que mesmo as mentiras do
‘igualitarismo’ e do ‘bloqueio’ não conseguem disfarçá-lo. Basta dizer
que em 1959, ano da revolução, o rendimento anual médio per capita era
de 1200 dólares, o segundo mais elevado da América Latina; em 2004, foi
de 70 dólares. Havia então 15 telefones por cada 100 habitantes; agora
há 3,5. O consumo calórico de alimentos era de 2800 calorias por
habitante e por dia; hoje, as senhas de racionamento permitem uma dieta
de apenas 1800 calorias, isto quando todos os produtos que incluem
estão disponíveis, o que nem sempre acontece. Por ano, a média de
consumo de carne por habitante era, há 45 anos, de 35 quilos, agora é
de 5,5 quilos”. São estas as famosas “conquistas” do socialismo cubano!
É por causa desses notáveis “progressos” que milhares e milhares de
cubanos fogem, sempre que podem, para Miami ou Florida, a escassos
minutos da ilha estalinista.
Perante esses dados cruéis, os sequazes de Fidel
replicam: sim, mas há “grandes conquistas” nas áreas da saúde e
educação. É o refrão de sempre, na tentativa de justificar a delirante
utopia. Ouçamos, novamente, José Manuel Fernandes. A sua voz é
elucidativa: “Só que o argumento esquece que Cuba já tinha o melhor
sistema de saúde da América Latina antes da revolução. No caso concreto
do sistema de saúde, em 1958 a taxa de mortalidade infantil já era a
mais baixa de toda a América Latina e a taxa de mortalidade geral era
melhor do que a dos Estados Unidos e a terceira mais baixa do mundo. Na
verdade, nessa época já havia um médico por cada 950 habitantes, número
que tantos anos de socialismo conseguiu melhorar para um médico por
cada 750 habitantes (em Portugal, no mesmo intervalo de tempo, o número
de médicos por 1000 habitantes foi multiplicado por quatro). Sendo que,
em 1959, não havia falhas no abastecimento de medicamentos, mesmo os
mais básicos, enquanto, hoje, o alho serve para combater a hipertensão,
o mamão para os problemas digestivos e os anti-inflamatórios só se
encontram no mercado negro. Isto para além de os médicos se debaterem
com carências terríveis (é um inferno fazer uma simples radiografia...)
e trabalharem em edifícios literalmente a desfazerem-se, onde as
condições de higiene são quase inexistentes. Mais: para tirar partido
de tantos médicos, é fundamental que os doentes os possam consultar,
algo muito difícil numa ilha onde o sistema de transportes colapsou
(havia 1 autocarro para cada 300 habitantes em 1959, hoje há apenas 1
para 25.000 habitantes) e muitos doentes dependem de boleias avulsas e
aleatórias para chegarem às consultas – eu próprio levei uma mãe e uma
filha a um hospital onde a criança iria ser operada. Por outro lado,
mesmo o chamado ‘milagre da educação’ não impede que, medida pelos
padrões da UNESCO, os seus níveis em Cuba fiquem a perder, só na
América Latina, para o Chile, a Argentina, o Uruguai e a Costa Rica”.
Já quanto aos países mais desenvolvidos, onde
vigora o Estado de direito e a economia aberta, qualquer tentativa de
comparação com Cuba é simplesmente absurda. Não se pode comparar, como
diria Revel, um país subdesenvolvido (como a “isla” de Fidel Castro,
onde a posse não autorizada de um aparelho de fax ou fotocopiadora dá
cadeia) com outro desenvolvido e próspero. Estados Unidos, os países da
União Europeia, Noruega, Suíca, etc., têm índices escandalosamente
superiores na educação (incluindo o investimento na investigação
científica, inovação tecnológica, etc.) e não precisaram, para isso, de
instaurar uma ditadura repressiva, nem de amordaçar os respectivos
povos. A “intelligentsia” bem-pensante ainda não percebeu, apesar dos
sucessivos fracassos, que o progresso não implica a abolição das
liberdades democráticas. O grande drama do “socialismo”
marxista-leninista, e das suas várias ramificações intelectuais, reside
precisamente neste ponto.
Aqui chegados, os leitores mais atentos
dir-me-ão: óptimo, então qual é a razão do título deste seu artigo?
Onde está a “modernidade” de Fidel Castro? Explico: o demagogo e
ditador-mor cubano é moderno porque situa-se na linhagem do Despotismo
Esclarecido de cariz modernizante, corrente inaugurada pelos jacobinos
da Revolução Francesa. Robespierre é o seu antecessor natural. O
Conselho de Estado cubano é uma espécie de “Comité de Salvação
Pública”, vigente nos finais do século XVIII. O partido de Fidel exerce
um poder absoluto, nos antípodas da tradição liberal, em nome de um
“ideal libertador”, moderno. Trata-se de um projecto Iluminista. O seu
modelo teórico é o “Contrato Social”, de Jean-Jacques Rousseau. O
partido comunista encarna a célebre “vontade geral” e exerce uma
ditadura cujo fim último é “libertar” a humanidade de todas as misérias
e servidões, eliminando os conflitos, numa igualdade “socialista”
perfeita e universal. Não por acaso, Lenine era um ardente admirador de
Robespierre e dos seus métodos (terror, julgamentos revolucionários,
anticlericalismo, etc.). O comunismo totalitário é moderno quanto aos
fins. Mas, como se sabe, produziu péssimos resultados. É uma crença
errada porque usa meios reprováveis e sacrifica a liberdade. Coloca os
valores no final da acção, no “homem futuro” (esquecendo “o concreto e
o presente”, duas dimensões humanas essenciais, para Albert Camus). A
sua prática é, por isso, bárbara, formidavelmente obscurantista. É o
regime político mais assassino e arbitrário de toda a história humana.
Com a permissão dos ilustres tecnocratas, tomo a
liberdade, ao abrigo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de
vos sugerir a leitura de mais um livro: “Sobre a Revolução” (Relógio
d’Água, Lisboa, 2001). A autora é Hannah Arendt. Porque é preciso
compreender. Distinguir. Para não cair nas armadilhas da vulgata. Com
Arendt, o leitor compreenderá, então, que houve duas vias distintas
para a modernidade. Uma representada pelo Iluminismo francês e outra,
mais moderada, pelo Iluminismo anglo-americano, alicerçado, este
último, no governo constitucional limitado, na liberdade individual e
no pluralismo político. Deus queira que o nobre povo cubano descubra
esta última tradição política (dos direitos do Homem e da democracia),
como nós fizemos, aliás, em Cabo Verde, quando se aboliu a perversa
tirania do Partido Único. Isto, aqui na Terra, nunca será perfeito. Mas
devemos, e podemos, lutar por Um Mundo Melhor.
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