ELECTRA E SOCIEDADE CIVIL*
A ELECTRA está em crise? Sim, porque foi sufocada
por um Governo com os olhos fixos no século XIV, pouco preocupado com o
bem comum. Um contrato de concessão mal concebido pelo PAICV,
investimentos adiados, défice tarifário, falhas na formatação da
agência de regulação, atraso na execução da política energética,
promessas não cumpridas – foi o desgoverno que lançou a cidade da Praia
na escuridão, sem energia, com prejuízos avultados para cidadãos e
empresários. Instalou-se, aliás, um ambiente social propício à
delinquência e ao vandalismo. Agostinho Lopes tem razão: o PAICV
prometeu e não cumpriu; não dá confiança
Virou moda! Hoje, cumprindo um ritual
protocolar, todos falam de “sociedade civil”. A palavra ganhou estatuto
e prestígio. “Sociedade civil” entra em tudo: conversas de café,
discurso político, gala de circunstância. O seu estatuto é quase mágico
– uma espécie de “solução derradeira” dos problemas mais urgentes da
República. Enteléquia da nova utopia democrática? Talvez, enquanto
gramática da despolitização – ou procura do “impolítico”, quando a
“realidade política” produz um estoque insuportável de má governação e
desencanto. De qualquer modo: globalizou-se. No uso e no abuso. Os
“mass media” vulgarizaram essa palavra.
Ela ganhou, de facto, uma dimensão utópica,
fantástica, numa como que “feitiçaria” dos novos tempos, em que o
clamor globalizante conquista espaço à lentidão das sociedades
tradicionais, atordoadas pelo choque tecnológico. A “Volta ao Mundo” já
não se faz em 80 dias, mas em escassos segundos, com a leveza de um
prosaico “clic” no computador. “WWW”, e o mundo inteirinho ajoelha-se
aos nossos pés. Vemos, por outro lado, a “sociedade civil” na televisão
e ficamos com a ilusão de que ela é um membro da nossa família e da
“civitas”. O “Afrobarómetro”, num inquérito recentemente realizado, diz
que não. Muitos são os sinais da apatia e do desleixo, relíquias de uma
cultura autoritária que aprisionou, durante décadas a fio, o espírito
cívico neste arquipélago.
Até os semitotalitários de outrora, que
defendiam o implacável aniquilamento da sociedade civil (aliás sob a
formidável lição do socialismo “científico”), pedem hoje o “prémio
Nobel” da cidadania para a sociedade civil. Querem impor, por decreto,
aquilo que o “partido único” mais deplorava e combatia. Os elogios são
universais. Unânimes. Floresce o consenso civil. A sociedade civil é,
porém, muitas vezes, apenas o refúgio cómodo de velhos preconceitos
desmentidos pela História social e económica.
Para não irmos mais atrás: 1821. Frederico
Hegel, partidário da monarquia prussiana, lança um poderoso ataque
contra a “sociedade civil”. Inaugura-se uma longa tradição intelectual
de embustes e mal entendidos. Parte constitutiva do “Espírito
Objectivo”, a sociedade civil é separada radicalmente do Estado. A
sociedade era, para Hegel, o reino do “egoísmo” e da “ganância”, a
coutada do maldito “liberalismo económico”, universo hobbesiano guiado
pelo lucro e pela perfídia, produzindo riqueza para uma “minoria” e
pobreza para a “maioria”. Karl Marx deve ter ficado muito feliz quando
leu a “dialéctica” hegeliana. Tudo estava lá. Ou quase. Introduziu
apenas ligeiras correcções. Hegel julgava que a “solução” estava no
Estado, “ideia” divina, encarnação puríssima da “eticidade”. Marx não.
Para ele, o segredo estava em mudar o “modo de produção”, suprimir o
“capitalismo”, num movimento brusco, pela abolição da “propriedade
privada”. A “revolução proletária” marcaria, pois, a nova fase
“socialista”, superação definitiva da “sociedade civil” e do próprio
Estado, simples “comissão executiva da burguesia”. Ou seja, pôr um
ponto final na “exploração” e nas “desigualdades”. A humanidade seria
então mais livre e fraterna. As “leis” do materialismo anunciavam, com
uma precisão matemática, “amanhãs que cantam”…
Não vou recordar – em pormenor – os resultados
práticos das “revoluções” comunistas, lideradas por radicais de caserna
como Lenine, Estaline, Mao Tsé-Tung ou Fidel Castro. O mais triste é
que arrasaram as liberdades cívicas/democráticas sem que as respectivas
nações atingissem a prosperidade. Milhões de indivíduos foram
sacrificados inutilmente. Destruíram a sociedade civil para quê? Para
construírem, em seu lugar, a sociedade servil, o totalitarismo
político, onde os governantes não são eleitos pelo povo e a penúria
generalizada fustiga a dignidade humana. Onde, enfim, a censura tolhe a
liberdade de imprensa e bloqueia o controlo da esfera pública. “La
Trahison des Clercs”…
A única sociedade civil que deu certo é aquela
ideada pelo Iluminismo anglo-americano, baseada no primado da lei e na
mudança pacífica e tranquila. Essa filosofia moderada não postula uma
separação radical entre o Estado e a sociedade. Simplesmente, confia no
Direito Natural, cujas raízes morais vieram do Cristianismo. O cidadão,
nessa perspectiva, tem certos direitos fundamentais, os quais merecem
ser protegidos pelo Estado. Esta é a tradição jushumanista de
Jefferson, Tocqueville ou John Locke. Sem Estado não há, portanto,
qualquer sociedade civil. Para Adam Smith, outro grande liberal
clássico, um Estado respeitador da Liberdade é a condição indiscutível
da boa governação. A sociedade civil requer um Estado civilizado,
território da participação individual, soberania popular e governo das
leis. A sua obra mais influente (“Inquérito sobre a Causa da Riqueza
das Nações”) nascia, simbolicamente, no mesmo ano em que nascia a
primeira República democrática do mundo – 1776, Estados Unidos da
América. Está, por isso, desfeita a extraordinária confusão ideológica
que tanto mal tem feito no debate político moderno: quem defende a
abolição do Estado não é o Liberalismo, mas sim o Marxismo (embora, na
prática, nunca tenha passado da “ditadura do proletariado”, fase
supostamente transitória) e o Anarquismo. “Basta de leis! Basta de
juízes!”, exclamava Kropotkin, anarquista russo do século XIX.
“Sociedade sem Estado”, eis o denominador comum do socialismo
“científico” e do anarquismo “libertário”.
A ELECTRA está em crise? Sim, porque foi
sufocada por um Governo com os olhos fixos no século XIV, pouco
preocupado com o bem comum. Um contrato de concessão mal concebido pelo
PAICV, investimentos adiados, défice tarifário, falhas na formatação da
agência de regulação, atraso na execução da política energética,
promessas não cumpridas – foi o desgoverno que lançou a cidade da Praia
na escuridão, sem energia, com prejuízos avultados para cidadãos e
empresários. Instalou-se, aliás, um ambiente social propício à
delinquência e ao vandalismo.
Agostinho Lopes tem razão: o PAICV prometeu e
não cumpriu; não dá confiança. É como se nos tivessem prometido o
Ronaldinho e, no fim, nos entregassem o Nuno Gomes. Seria cara-de-pau a
mais. Os relatórios anuais do PNUD, esses, não enganam. Cabo Verde
perde pontos em áreas sensíveis, como a educação e a saúde. Os factos
são teimosos. O PAICV ainda não percebeu que um Estado forte é um
sistema político onde os poderes estão divididos e equilibrados,
segundo a boa lógica republicana. Fareed Zakaria dá-nos, a propósito,
uma lição exemplar: nos Estados Unidos, o governo é limitado (“checks
and balances”), mas o Estado é muito forte. Em África, todavia, os
executivos são poderosos – quase monarquias absolutas; mas os Estados
são incontestavelmente débeis e desorganizados; corruptos,
mercantilistas, rapaces e ineficientes.
Felisberto Vieira, o edil da capital, foi mais
longe. Falou em “desprivatização” da ELECTRA, esquecendo que o seu
município deve milhares de contos à empresa. A culpa não é só dos
portugueses, nesse bizarro jogo do gato e do rato.
Água e energia são – disse ele – “bens
inalienáveis”… “nos termos da Constituição”. Ninguém pegou nisso, mas é
um tópico notável. Há, aqui, uma sugestão subtil: água e energia são
“direitos fundamentais” constitucionais. Todavia: a sugestão é obscura.
Tautológica. Há vários tipos de direitos fundamentais. Água e energia
são “direitos cívicos”? Não senhor. São “direitos políticos”? Também
não. São “direitos culturais”? Duvido. Quando muito… são “direitos
sociais”. Conclusão: são serviços que devem ser abertos à concorrência
e à iniciativa privada. Só assim se reduz o respectivo custo e se
garante a qualidade, que é o que a população deseja. A
“desprivatização” não é solução; é canga de politicantes; adiamento de
um problema básico; é apenas um argumento emotivo, táctica rasteira de
quem não possui estratégia convincente. O burocratismo patrimonialista,
patrioteiro e avesso à economia de mercado, nunca foi a mola do
Progresso e da Qualidade. Pelo contrário: tem sido a causa do atraso
tecnológico e da pobreza das nações. É isso que a sociedade civil tem
que perceber. A educação económica é hoje, mais do que nunca, o
baluarte da cidadania e da competitividade, a trincheira contra a
ignorância e o despotismo.
* Para “Ney” Santos, com simpatia e estima.
Seja o primeiro a comentar
Enviar um comentário