terça-feira, 11 de outubro de 2005

ELECTRA E SOCIEDADE CIVIL*

A ELECTRA está em crise? Sim, porque foi sufocada por um Governo com os olhos fixos no século XIV, pouco preocupado com o bem comum. Um contrato de concessão mal concebido pelo PAICV, investimentos adiados, défice tarifário, falhas na formatação da agência de regulação, atraso na execução da política energética, promessas não cumpridas – foi o desgoverno que lançou a cidade da Praia na escuridão, sem energia, com prejuízos avultados para cidadãos e empresários. Instalou-se, aliás, um ambiente social propício à delinquência e ao vandalismo. Agostinho Lopes tem razão: o PAICV prometeu e não cumpriu; não dá confiança

Virou moda! Hoje, cumprindo um ritual protocolar, todos falam de “sociedade civil”. A palavra ganhou estatuto e prestígio. “Sociedade civil” entra em tudo: conversas de café, discurso político, gala de circunstância. O seu estatuto é quase mágico – uma espécie de “solução derradeira” dos problemas mais urgentes da República. Enteléquia da nova utopia democrática? Talvez, enquanto gramática da despolitização – ou procura do “impolítico”, quando a “realidade política” produz um estoque insuportável de má governação e desencanto. De qualquer modo: globalizou-se. No uso e no abuso. Os “mass media” vulgarizaram essa palavra.
Ela ganhou, de facto, uma dimensão utópica, fantástica, numa como que “feitiçaria” dos novos tempos, em que o clamor globalizante conquista espaço à lentidão das sociedades tradicionais, atordoadas pelo choque tecnológico. A “Volta ao Mundo” já não se faz em 80 dias, mas em escassos segundos, com a leveza de um prosaico “clic” no computador. “WWW”, e o mundo inteirinho ajoelha-se aos nossos pés. Vemos, por outro lado, a “sociedade civil” na televisão e ficamos com a ilusão de que ela é um membro da nossa família e da “civitas”. O “Afrobarómetro”, num inquérito recentemente realizado, diz que não. Muitos são os sinais da apatia e do desleixo, relíquias de uma cultura autoritária que aprisionou, durante décadas a fio, o espírito cívico neste arquipélago.
Até os semitotalitários de outrora, que defendiam o implacável aniquilamento da sociedade civil (aliás sob a formidável lição do socialismo “científico”), pedem hoje o “prémio Nobel” da cidadania para a sociedade civil. Querem impor, por decreto, aquilo que o “partido único” mais deplorava e combatia. Os elogios são universais. Unânimes. Floresce o consenso civil. A sociedade civil é, porém, muitas vezes, apenas o refúgio cómodo de velhos preconceitos desmentidos pela História social e económica.
Para não irmos mais atrás: 1821. Frederico Hegel, partidário da monarquia prussiana, lança um poderoso ataque contra a “sociedade civil”. Inaugura-se uma longa tradição intelectual de embustes e mal entendidos. Parte constitutiva do “Espírito Objectivo”, a sociedade civil é separada radicalmente do Estado. A sociedade era, para Hegel, o reino do “egoísmo” e da “ganância”, a coutada do maldito “liberalismo económico”, universo hobbesiano guiado pelo lucro e pela perfídia, produzindo riqueza para uma “minoria” e pobreza para a “maioria”. Karl Marx deve ter ficado muito feliz quando leu a “dialéctica” hegeliana. Tudo estava lá. Ou quase. Introduziu apenas ligeiras correcções. Hegel julgava que a “solução” estava no Estado, “ideia” divina, encarnação puríssima da “eticidade”. Marx não. Para ele, o segredo estava em mudar o “modo de produção”, suprimir o “capitalismo”, num movimento brusco, pela abolição da “propriedade privada”. A “revolução proletária” marcaria, pois, a nova fase “socialista”, superação definitiva da “sociedade civil” e do próprio Estado, simples “comissão executiva da burguesia”. Ou seja, pôr um ponto final na “exploração” e nas “desigualdades”. A humanidade seria então mais livre e fraterna. As “leis” do materialismo anunciavam, com uma precisão matemática, “amanhãs que cantam”…
Não vou recordar – em pormenor – os resultados práticos das “revoluções” comunistas, lideradas por radicais de caserna como Lenine, Estaline, Mao Tsé-Tung ou Fidel Castro. O mais triste é que arrasaram as liberdades cívicas/democráticas sem que as respectivas nações atingissem a prosperidade. Milhões de indivíduos foram sacrificados inutilmente. Destruíram a sociedade civil para quê? Para construírem, em seu lugar, a sociedade servil, o totalitarismo político, onde os governantes não são eleitos pelo povo e a penúria generalizada fustiga a dignidade humana. Onde, enfim, a censura tolhe a liberdade de imprensa e bloqueia o controlo da esfera pública. “La Trahison des Clercs”…
A única sociedade civil que deu certo é aquela ideada pelo Iluminismo anglo-americano, baseada no primado da lei e na mudança pacífica e tranquila. Essa filosofia moderada não postula uma separação radical entre o Estado e a sociedade. Simplesmente, confia no Direito Natural, cujas raízes morais vieram do Cristianismo. O cidadão, nessa perspectiva, tem certos direitos fundamentais, os quais merecem ser protegidos pelo Estado. Esta é a tradição jushumanista de Jefferson, Tocqueville ou John Locke. Sem Estado não há, portanto, qualquer sociedade civil. Para Adam Smith, outro grande liberal clássico, um Estado respeitador da Liberdade é a condição indiscutível da boa governação. A sociedade civil requer um Estado civilizado, território da participação individual, soberania popular e governo das leis. A sua obra mais influente (“Inquérito sobre a Causa da Riqueza das Nações”) nascia, simbolicamente, no mesmo ano em que nascia a primeira República democrática do mundo – 1776, Estados Unidos da América. Está, por isso, desfeita a extraordinária confusão ideológica que tanto mal tem feito no debate político moderno: quem defende a abolição do Estado não é o Liberalismo, mas sim o Marxismo (embora, na prática, nunca tenha passado da “ditadura do proletariado”, fase supostamente transitória) e o Anarquismo. “Basta de leis! Basta de juízes!”, exclamava Kropotkin, anarquista russo do século XIX. “Sociedade sem Estado”, eis o denominador comum do socialismo “científico” e do anarquismo “libertário”.
A ELECTRA está em crise? Sim, porque foi sufocada por um Governo com os olhos fixos no século XIV, pouco preocupado com o bem comum. Um contrato de concessão mal concebido pelo PAICV, investimentos adiados, défice tarifário, falhas na formatação da agência de regulação, atraso na execução da política energética, promessas não cumpridas – foi o desgoverno que lançou a cidade da Praia na escuridão, sem energia, com prejuízos avultados para cidadãos e empresários. Instalou-se, aliás, um ambiente social propício à delinquência e ao vandalismo.
Agostinho Lopes tem razão: o PAICV prometeu e não cumpriu; não dá confiança. É como se nos tivessem prometido o Ronaldinho e, no fim, nos entregassem o Nuno Gomes. Seria cara-de-pau a mais. Os relatórios anuais do PNUD, esses, não enganam. Cabo Verde perde pontos em áreas sensíveis, como a educação e a saúde. Os factos são teimosos. O PAICV ainda não percebeu que um Estado forte é um sistema político onde os poderes estão divididos e equilibrados, segundo a boa lógica republicana. Fareed Zakaria dá-nos, a propósito, uma lição exemplar: nos Estados Unidos, o governo é limitado (“checks and balances”), mas o Estado é muito forte. Em África, todavia, os executivos são poderosos – quase monarquias absolutas; mas os Estados são incontestavelmente débeis e desorganizados; corruptos, mercantilistas, rapaces e ineficientes.
Felisberto Vieira, o edil da capital, foi mais longe. Falou em “desprivatização” da ELECTRA, esquecendo que o seu município deve milhares de contos à empresa. A culpa não é só dos portugueses, nesse bizarro jogo do gato e do rato.
Água e energia são – disse ele – “bens inalienáveis”… “nos termos da Constituição”. Ninguém pegou nisso, mas é um tópico notável. Há, aqui, uma sugestão subtil: água e energia são “direitos fundamentais” constitucionais. Todavia: a sugestão é obscura. Tautológica. Há vários tipos de direitos fundamentais. Água e energia são “direitos cívicos”? Não senhor. São “direitos políticos”? Também não. São “direitos culturais”? Duvido. Quando muito… são “direitos sociais”. Conclusão: são serviços que devem ser abertos à concorrência e à iniciativa privada. Só assim se reduz o respectivo custo e se garante a qualidade, que é o que a população deseja. A “desprivatização” não é solução; é canga de politicantes; adiamento de um problema básico; é apenas um argumento emotivo, táctica rasteira de quem não possui estratégia convincente. O burocratismo patrimonialista, patrioteiro e avesso à economia de mercado, nunca foi a mola do Progresso e da Qualidade. Pelo contrário: tem sido a causa do atraso tecnológico e da pobreza das nações. É isso que a sociedade civil tem que perceber. A educação económica é hoje, mais do que nunca, o baluarte da cidadania e da competitividade, a trincheira contra a ignorância e o despotismo.
* Para “Ney” Santos, com simpatia e estima.

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Jurista e Docente Universitário

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